A pulsão de morte liberta-se, com particular exuberância entre os intelectuais, nas vésperas de guerra. A maior matança política em Portugal, em mais de século e meio (200 mortos e mais de mil feridos), ocorreu em maio de 1915 nas ruas de Lisboa, na insurreição que derrubou o governo de Pimenta de Castro e afastou o presidente Manuel de Arriaga. O objetivo fundamental dos golpistas, como Afonso Costa e João Chagas – que as suas milícias ecoavam na rua sob o lema “Viva a guerra!” – foi o de envolver Portugal na frente europeia da I Guerra Mundial, e não apenas em Angola e Moçambique e sem declaração formal de guerra à Alemanha, como defendiam Brito Camacho e Bernardino Machado. A turba armada, incitada por muitos publicistas, conseguiu o que queria. Um quarto de século antes, em janeiro de 1890, gente exaltada insultava o jovem rei D. Carlos I por este, depois da imposição do Ultimato britânico, ter poupado os portugueses do fogo mortífero da Armada britânica. O enorme serviço que o Rei prestou ao interesse nacional seria pago com juros de chumbo no regicídio de 1908.
A recordação destas tragédias foi-me suscitada pela entrevista do PM ao Público no passado dia 20. A citação que a jornalista Teresa de Sousa escolheu para título reza assim: “A paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”. Dificilmente se encontrará uma declaração tão belicosa em qualquer homólogo da OTAN, com exceção, talvez, dos Estados bálticos. Nos EUA, o país que importa, a linha prevalecente, descontado o ardor retórico, jamais isolou o apoio militar à Ucrânia da diplomacia. Dia 16, o secretário de Estado Blinken chegou ao ponto de alertar Kiev para o risco de tentar incluir o território da Crimeia nos seus objetivos finais, pois tal seria uma linha vermelha” (red line) para Putin. Ao contrário do que sugere o nosso PM, Blinken explicita que o eventual sucesso da Ucrânia não seria uma vitória de soma zero, pois haveria interesses fundamentais da Rússia a ter, desejavelmente, em conta. O PM poderia ter-se mantido no quadro oficial da OTAN e da UE, sem necessidade de assumir uma hostilidade pré-bélica com um país com o qual ainda mantemos relações diplomáticas. Portugal não tem de fazer uma voz grossa, que termine em fífia. Ao contrário de países como a Alemanha, França e Polónia, Portugal esteve completamente afastado dos desastres político-diplomáticos, que não podem ser esquecidos por quem queira compreender as raízes desta guerra. Portugal não prometeu nada que não pudesse ou não quisesse cumprir, nem junto do presidente Yanukovich (21 02 2014), nem mais tarde nos Acordos de Minsk I e II – para resolver pacificamente o estatuto das regiões russófonas do Donbass no quadro da soberania ucraniana – que afinal, sabemos agora através das confissões de Merkel e Hollande, serviram apenas para dar tempo ao armamento de Kiev. Não há prova maior para quem tem na sua decisão a vida de milhões de vidas, do que o estreito caminho entre a paz e a guerra. Clamar, mesmo que em coro, por uma temerária “vitória” no presente conflito é recusar a responsabilidade pelo formidável e inédito desafio que esta guerra representa. Um ano de combates já deixou um rasto de destruição humana e institucional que ameaça as gerações futuras. Se os frágeis fios que nos separam da expansão da guerra se romperem, o “milagre Gorbachev” não se repetirá. Levada ao limite, a Rússia, ao contrário da União Soviética, não parece inclinada a perecer sozinha.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 25 de fevereiro de 2023, p. 10