OS PRIMEIROS PONTOS DE RUTURA NO SISTEMA-TERRA

Os cientistas do Sistema-Terra (ST) olham para o planeta como uma totalidade dinâmica e interdependente. O todo é sempre composto por partes, mas estas influenciam-se mutuamente de modo complexo e muito difícil de identificar, e ainda mais de quantificar. Algumas das partes componentes do ST são regiões geograficamente contíguas, com características ecológicas semelhantes. Outras podem estar dispersas geograficamente, mas apresentando traços biofísicos comuns, como é caso dos recifes de coral. Ao longo das últimas duas décadas têm-se multiplicado os estudos que procuram antecipar quais serão as diferentes partes do ST que primeiro entrarão em colapso devido ao aumento da temperatura média à superfície terrestre causada pelas alterações climáticas.

O climatologista James Hansen, que há 35 anos alertou o Congresso dos EUA sobre os perigos das alterações climáticas, voltou a chamar a atenção para os resultados de um estudo recente onde o calendário da crise ambiental e climática sofre uma significativa aceleração, em relação a projeções anteriores. Apenas alguns dados: a) 2030, segundo a Agência Internacional de Energia, é a nova data para o pico das emissões de gases de estufa, em vez de uma data anterior a 2025 como esperado pelo Acordo de Paris; b) ainda nesta década, o presente aumento de + 1,2ºC da temperatura média global (em relação ao período pré-industrial de referência, 1850-1900), subirá para +1,5ºC (deitando por terra uma das ambições do Acordo de Paris); c) antes de 2050 (e não em 2100, como antes se pensava que ocorreria) essa temperatura média atingirá o teto de 2ºC, durante muitos anos considerado como um limite proibido para a viabilidade de uma Terra compatível com uma civilização estabilizada (1), Estes dados, aliados à total paralisia do sistema económico-político que lidera esta marcha global para o desastre coletivo, obrigam-nos a vislumbrar quais serão as regiões do ST que primeiro atravessarão os “pontos de rutura” (tipping points), a partir dos quais se iniciarão mudanças sistémicas irreversíveis, entre as quais poderemos incluir reações em cadeia com outras partes do ST (2).

Vejamos quais seis as zonas do ST mais sensíveis ao aquecimento global e seus impactos disruptivos.

  1. O Ártico e a Gronelândia. O desaparecimento acelerado da cobertura de gelo flutuante no Oceano Ártico ultrapassará o ponto de não retorno com uma temperatura média global de +1,5ºC, isto é, ainda durante esta década. Deve ser notado que hoje, o aumento da temperatura média nessa região é muito superior à média global, devido ao facto de que, sem o gelo flutuante, que tem um efeito de albedo (devolve a maior parte da radiação solar para o espaço exterior), aumentará a absorção do calor na coluna de água oceânica. O mesmo ocorre na Gronelândia, onde o processo de degelo da imensa e espessa camada gelada que cobre a terra firme, entrará, também em ciclo de não-retorno. Se todo o gelo da Gronelândia derreter para o Oceano, o nível médio do mar (NMM) poderá subir 6 metros.
  2. Circulação Termohalina Meridional do Atlântico (AMOC, na sigla inglesa): Já aqui escrevemos sobre a possibilidade de este sistema de correntes (onde se situa a Corrente Quente do Golfo) diminuir fortemente a sua atividade, também devido à entrada no mar de quantidades crescentes de água doce fria proveniente do degelo, capaz de “afundar” a água salgada quente. Nesse caso, que poderá ter o seu ponto de viragem entre +1,2ºC e +2ºC), poderemos assistir a uma redução da temperatura na Europa ocidental, enquanto o resto do mundo continuará a aquecer.
  3. Alterações do Regime de Monções. Deste regime de chuvas depende a vida de mais de mil milhões de pessoas, particularmente na Ásia. Estima-se que ele possa entrar em rutura com um aumento de entre +2ºC a +3ºC. As consequências catastróficas a nível global serão imensas.

As monções dão alimento a mais de mil milhões de seres humanos

  1. Floresta Amazónica. A seca duradoura que atinge a vasta região amazónica, tem reduzido caudais de cursos de água e transformado, nalguns anos recentes, esse “pulmão verde” planetário num emissor líquido de dióxido de carbono para a atmosfera, em vez da grande esponja do mesmo que há milhões de anos tem sido. Os estudos indicam que dentro de algumas décadas, a Amazónia deixará de ser uma floresta húmida e um tesouro ímpar da biodiversidade, para se transformar numa gigantesca savana. Um aumento de entre +2ºC a +3ºC bastará para tal. Os efeitos sociais e ecológicos desse processo serão sentidos em todo o planeta.
  2. Manto de Gelo da Antártida. 98% da massa continental onde se encontra o Pólo Sul está coberta por um manto de gelo cuja espessura média é de 2 km. Os sinais de instabilidade são já visíveis, tanto na península ocidental como no coração desse continente gelado. Estima-se que com +1,5ºC o processo que poderá fazer aumentar o NMM em mais 60 metros, será irreversível.

Perfil de Permafrost

  1. Permafrost. Nas latitudes setentrionais asiáticas (Sibéria) e da América do Norte, a degradação do permafrost (solo permanentemente gelado, ou pergelissolo) intensificará o processo de aquecimento global com a libertação para a atmosfera de carbono e metano, até agora contidos no solo gelado. Para tal, bastará ultrapassar a barreira de +1,5ºC.

Perante a enormidade de tudo isto, não encontramos conceito adequado, no léxico disponível, para o sentimento de vergonha que nos invade perante a consciência de que a maior indústria humana é hoje a do divertissement. Tal como nas macabras procissões de foliões que durante a Peste Negra medieval desafiavam a doença correndo para os seus braços, também nós pagamos para que nos afastem da visão lúcida do abismo mortal para onde, por nossa inteira e exclusiva responsabilidade, encaminhamos a humanidade inteira. Os vivos, a memória dos mortos, e a possibilidade infinitamente adiada daqueles que nunca irão nascer.

Viriato Soromenho-Marques

Notas

  1. Delger Erdenesanaa“35 Years After Addressing Congress, James Hansen Has More Climate Warnings”, New York Times, Nov. 2, 2023. https://www.nytimes.com/2023/11/02/climate/james-hansen-global-warming-report.html
  2. Tim Lenton [Entrevista], What Will Earth Look Like When These 6 Tipping Points Hit? 06 09 2022. https://www.youtube.com/watch?v=MBKZWKeKYqE

Publicado no Jornal de Letras, edição de 15 de novembro 2023, página 32.

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