A democracia representativa é frágil na sua essência. Esta é a sempre ameaçada relação de confiança entre a multidão de representados e o pequeno grupo de representantes. Idealmente, os escolhidos pelo voto dos seus concidadãos deveriam receber essa confiança com um sentido de gratidão e uma determinação de servir, como um verdadeiro escol, os concidadãos que os honraram pela elevação acima de todos os outros. Na génese dos modernos parlamentos existem páginas épicas de exaltação da nobreza da representação política. Por exemplo, nos textos de Alexander Hamilton e James Madison, principais autores da Constituição Federal dos EUA, a procura do reconhecimento e fama pública era designada como a única paixão legítima para os políticos eleitos. Até em 1957, foi possível, ao então senador John F. Kennedy, ganhar um prémio Pulitzer pela publicação do seu livro, Rostos de Coragem (Profiles in Courage), onde se enaltece a comprovada abdicação do interesse próprio, em favor do interesse geral e do bem público, por parte de oito grandes parlamentares da história norte-americana. Nestes dias de Biden e Trump, na época em que, de acordo com palavras do filósofo John Rawls, o Congresso dos EUA se transformou num mercado onde as leis são compradas e vendidas, ninguém poderia repetir a façanha de JFK por absoluta falta de matéria-prima. Portugal não é, evidentemente exceção. Os brilhantes e inspiradores discursos de Manuel Fernandes Tomás, nos debates das Cortes Constituintes (1821-22), não se parecem em nada com a oratória bafienta de tantos eleitos nos parlamentos da monarquia regida pela Carta Constitucional, que Ramalho Ortigão arrasaria amiúde nas Farpas. O mesmo se poderá dizer sobre a aurora e o crepúsculo da I República.
Na UE, a degradação dos parlamentos democráticos, alimentada pela complacência dos partidos tradicionais do centro-esquerda perante o crescimento da desigualdade, acelerou com a pandemia e a guerra. Aditivada, ainda, pela incompetência da CE de Ursula von der Leyen. É confrangedor verificar como o Presidente da AR, Aguiar Branco, se deixou encurralar, transformando num direito a pulsão dos deputados da extrema-direita para debitarem aleivosias. No mesmo dia em que o povo turco foi enxovalhado na AR, a deputada Isabel Moreira denunciou o desastroso currículo em matéria de direitos humanos da terceira maior bancada do hemiciclo. Durante os minutos em que usou da palavra, Isabel Moreira teve de aumentar o tom de voz para vencer o seu insultuoso coro. Infelizmente, Aguiar Branco limitou-se a uns escassos e quase inaudíveis apelos ao civismo: “Senhores deputados, senhores deputados…”. Se o nosso parlamento tivesse, hoje, metade da qualidade dos deputados constituintes de 1976, o que estaria agora no centro do debate público seria a ausência de intervenção vigorosa do presidente da AR na defesa do direito à palavra de uma corajosa deputada, com um excecional contributo para o reconhecimento de direitos e liberdades de minorias (homossexuais, trans, étnicas, entre outras), cuja integridade física e moral é posta em causa pela ascensão desta tribo partidária, com um apetite necrófago pela democracia. O aumento de 38% dos crimes de ódio em Portugal, entre 2022 e 2023, apenas o comprova. Por isso, não é só a AR que tem um problema. É o próprio regime democrático que está ameaçado pelos seus predadores dentro de portas. A demora em reconhecê-lo apenas confirma a gravidade da sua doença.
Soromenho-Marques, Viriato, “Os Parlamentos também se abatem”, Diário de Notícias, 25 de maio de 2024, página 11.