A segunda Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos teve como principal mérito o ter-se realizado, apesar da guerra em curso na Europa e do processo de entropia política e económica, que se imiscuiu entre a pandemia de Covid 19 e a cada vez mais inevitável crise alimentar, sanitária e migratória que deverá começar a agudizar-se a partir do final do Verão e inícios de Outono.
No plano substantivo, a Conferência de Lisboa gerou a alusão (mais do que a discussão) de uma multidão de temas importantes, como por exemplo: a urgência de aumentar exponencialmente as áreas marinhas protegidas, na realidade e não apenas no papel, se quisermos travar a destruição da biodiversidade marinha (fala-se de uma meta de 30% até ao ano 2030); o faseamento rigoroso do abandono de subsídios a modalidades predatórias, diria mesmo criminosas, de pesca, como a do arrasto, que já destruiu ou danificou uma área de fundos marinhos equivalente a quase 10% de toda a superfície planetária (50 milhões de Km2); o imperativo de aprovar uma moratória que impeça o início da exploração mineira dos fundos marinhos, que é arriscadíssima pelos impactos ambientais que terá (basta analisar os estragos já causados pela exploração de combustíveis fósseis off-shore); a exigência de um instrumento legal que permita acabar com a transformação dos oceanos na lixeira final dos plásticos. A Declaração de Lisboa fez-se eco de alguns destes temas. Nenhuma resolução foi tomada, e fez-se como de costume, marcou-se a próxima reunião…
Cada vez mais longe da “cooperação compulsória”. Desde a primeira conferência das Nações Unidas sobre Ambiente Humano (Estocolmo 1972) até hoje podemos considerar que ocorreram três décadas com movimentos oscilatórios, de subidas, alternadas com quedas de entusiasmo (entre 1972 e 2002), seguidas de duas décadas (2002-2022) de falsas partidas, dominadas por uma tendência para a estagnação e o declínio da credibilidade da diplomacia ambiental e climática. O volume dos conhecimentos sobre o estado crítico do ambiente e clima aumentou vertiginosamente, tanto em quantidade como em rigor. O que a situação desesperada da biodiversidade, ou os relatórios progressivamente mais preocupantes do clima nos ensinam, exigiria do sistema internacional e da diplomacia ambiental uma cooperação cada vez mais franca e profunda, Estamos no Titanic, e só não nos afundaremos se confiarmos uns nos outros, comprometendo-nos a atingir objetivos comuns que estejam ao nosso alcance. É a isso que há décadas designo como uma política de cooperação compulsória, opondo-a à visão tradicional da política como luta entre rivais e inimigos. A dicotomia Inimigo-Amigo (Feind-Freund), de Carl Schmitt, poderia fazer sentido numa sociedade pré-industrial com 700 milhões de habitantes. Hoje, manter essa dicotomia numa sociedade hipertecnológica com dez vez mais habitantes, é um absurdo que nos conduzirá ao suicídio.
Contudo, mesmo antes da Conferência de Joanesburgo (2002), que terminou sem qualquer resultado, o que verificamos é a recusa crescente dos países em aceitarem compromissos. Como é que chegámos a esta situação que tornará inevitável a conjugação do futuro com miséria e sofrimento, em tudo o contrário da esperança de que as gerações vindouras deveriam ser legítimas titulares. Deixemos um breve enunciado crítico dos quatro principais nós górdios com que nos debatemos a nível global:
a) Os EUA passam de líder a travão. Desde 1997 que o Congresso dos EUA é controlado pelos setores mais retrógrados da economia norte-americana, onde pontificam os combustíveis fósseis e a indústria armamentista. Durante as presidências de G. W. Bush Jr. e Donald Trump, essa fação totalmente indiferente a tudo o que não seja o aumento da sua riqueza, dominou sem oposição. Nas presidências de Clinton e de Obama, o Congresso paralisou qualquer iniciativa de diplomacia ambiental. Os EUA recusaram-se a cumprir o Protocolo de Quioto, no âmbito da Convenção Climática de 1992. A própria cumplicidade estratégica entre os EUA e a União Europeia em matéria ambiental há muito que desapareceu. A atual presidência Biden, para além da desastrada condução da guerra contra a Rússia, está reduzida à total impotência, agora que o Supremo Tribunal (ST) reduziu a poeira a autonomia da Agência de Proteção Ambiental dos EUA. Esse acórdão do ST, de 30 de junho, devolveu a um Congresso dominado por políticos venais e cientificamente analfabetos, as capacidades que só ao poder executivo deveriam caber. Ao recusarem assumir as suas responsabilidades planetárias no domínio ambiental os EUA parecem querer guardar a liderança planetária apenas na capacidade bélica.
b) O esgotamento das Convenções-Quadro vinculativas. Regista-se, de modo generalizado, entre os diversos atores da ‘constelação ambiental’ o sentimento de que o modelo prevalecente ao longo das últimas décadas, de produção de grandes Convenções-Quadro atingiu um ponto de saturação e esgotamento. O seu desempenho parece não apresentar um nível suficientemente satisfatório para responder, com a indispensável celeridade, às ameaças mais urgentes. Os tempos de ratificação das Convenções parecem, em muitos casos, excessivos, os meios para monitorizar o seu efetivo cumprimento e punir os infratores revelam-se claramente desajustados. O tempo da soft law e das soft institutions parece ter atingido o auge, sem que se vislumbrem alternativas teóricas e práticas. Se no passado, as Convenções eram acompanhadas de protocolos, que as regulamentavam de modo a serem cumpridas, com monitorização e controlo, como aconteceu com a poluição transfronteiriça (protocolo de Helsínquia, 1985), com o ozono (protocolo de Montreal, 1987), e com o clima, (protocolo de Quioto, 1997). Hoje, com a relutância dos EUA e de outros países, entrámos no tempo das boas intenções, como o Acordo de Paris (2015), que é uma mão cheia de promessas às quais nenhum país se sente autenticamente vinculado.
c) A deriva da fragmentação e do curto prazo. O método de tentativa e erro prevalecente na procura de políticas públicas ambientais mais integradas (por exemplo: planos nacionais na década de 1990, estratégias de desenvolvimento sustentável na primeira década do século XXI) acabou por gerar uma sensação de impotência e inadequação das burocracias e lideranças políticas face à complexidade crescente dos problemas ambientais. O resultado conduziu, inevitavelmente, ao refúgio em políticas de curto prazo, uma espécie de navegação de cabotagem onde se abandonam as medidas de verdadeira prevenção e combate às causas dos problemas, externalizando para a geração seguinte os custos decorrentes de opções estritamente voltadas para a mera adaptação/mitigação de base regional e numa ótica, que em vez de um olhar amplo e solidário, se situa num quadro do simples cálculo do custo-benefício.
d) Mais conhecimento, menos ação. Verifica-se uma visível assimetria entre o incremento do conhecimento científico e a (s) resposta(s) do (s) sistema (s) político (s). A aparente inércia destes sistemas é escudada num debate acerca do efetivo valor e papel da ciência na fundamentação dos processos de tomada de decisão em políticas públicas. A diferente apreciação do significado do “princípio da precaução”, uma peça fundamental na diplomacia ambiental, por parte dos representantes dos EUA e da União Europeia é, a esse respeito, muito esclarecedora.
Todo este quadro fica significativamente mais agravado pelos riscos contidos no prolongar da guerra da Ucrânia, que contém um considerável risco de alastramento e de escalada nuclear. Nenhum de nós pode ter a pretensão de conseguir inverter as poderosas forças mortíferas e diabólicas que parece estarem a tomar conta do planeta. Contudo, o que está em nosso poder é resistir-lhes. Poderemos ser derrotados, mas nunca o seremos sem luta e ainda menos com o nosso consentimento.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 13 de julho de 2022, pp. 27 e 28.