Na última crónica de Ecologia abordei as virtualidades e promessas transformadoras, muito ambiciosas, contidas no Pacto Ecológico Europeu (Euopean Green New Deal), que constitui, de longe, a mais estruturalmente inovadora estratégia alguma vez avançada por qualquer presidente da Comissão Europeia (CE). Hoje cabe-nos abordar os principais e mais poderosos obstáculos que poderão gorar a ousadia de Ursula von der Leyen, e da sua nova equipa, desacreditando ainda mais o prestígio da União Europeia.
A resistência dos interesses instalados
Quando a II Guerra Mundial terminou existia a convicção, partilhada por exemplo pelo grande economista Karl Polanyi, de que as reformas introduzidas pelo Presidente Franklin D. Roosevelt nos EUA se tornariam universais, pelo menos nos países capitalistas. Os excessos da economia de mercado, em particular os do sector financeiro que levaram ao crash de 1929 e à Grande Depressão, poderiam ser corrigidos por políticas públicas ao serviço da maioria da população, financiando os direitos sociais e o combate às desigualdades através de uma fiscalidade fortemente redistributiva. Vivemos hoje, ao contrário das esperanças de 1945, na época do hípercapitalismo global e total. Num novo império do capital financeiro, que, tal como se fora um Minotauro planetário, não hesita em exigir sacrifícios regulares aos povos (basta analisar o OE português ao longo da última década). A Cimeira de Davos funciona como a reunião do Conselho de Ministros informal de uma plutocracia entrincheirada nos seus privilégios. Habituados a olhar para os governos de cima para baixo, quase toda esta gente tem dinheiro investido no negócio dos combustíveis fósseis. Não vai ceder terreno sem luta.
O comum dos mortais não faz uma pálida ideia do que está em causa. De acordo com o FMI, em 2017 os subsídios conferidos pelos governos de todo o mundo ao sector das energias responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa totalizaram 5, 2 biliões de dólares (aproximadamente a soma do PIB alemão e italiano), ou 6,5% do PIB mundial! Para piorar as coisas, isso representou um forte aumento em relação aos valores de 2015, ano em que foi obtido o famoso Acordo de Paris para combater as alterações climáticas, respectivamente, 4,7 biliões de dólares e 6,3% do PIB mundial. Fazendo um zoom em relação especificamente à União Europeia (UE), nesse ano de 2017 os subsídios ao carvão, petróleo e gás natural totalizaram 289 mil milhões de dólares, quase o dobro dos 149 mil milhões de euros do orçamento da UE para 2019…
As multinacionais lesadas pela luta europeia contra as alterações climáticas vão abrir fogo contra as propostas de Ursula von der Leyen com todos os canhões que têm ao seu alcance. Existe uma panóplia de instrumentos legais, urdidos quase em segredo por uma multidão de juristas muito bem pagos, com a cúmplice complacência de políticos habituados a tratar a riqueza com zelo serviçal, que vão tornar cada avanço na direcção certa tão difícil como a conquista de trincheiras na I Guerra Mundial. Dois exemplos que falam por si. O governo alemão enfrenta uma batalha legal com a empresa sueca Vatterfall pela decisão tomada pela chanceler Merkel de acelerar o encerramento das centrais nucleares na Alemanha, na sequência da catástrofe atómica de Fukushima, em 2011. Por seu lado o governo holandês, está sob a ameaça de ser colocado na barra do tribunal, pela empresa alemã Uniper, se decidir levar avante a sua decisão de fechar as suas centrais a carvão antes de 2030. Em ambos os casos, a base legal que manieta os governos é um tratado internacional, assinado em Lisboa, em Dezembro de 1994: o Energy Charter Treaty(ECT)!
Obstáculos financeiros e políticos
As tarefas do Pacto Ecológico Europeu necessitariam de um orçamento europeu e de uma legitimidade política por parte da CE que não existem ainda. A recusa absurda por parte da Alemanha – e de alguns outros seus aliados no Conselho Europeu – de avançar para um verdadeiro modelo de federalismo europeu, criando as condições para que o orçamento europeu possa estar à altura da ambição comum de liderar a luta contra o colapso ambiental, é a principal ameaça ao Pacto Ecológico Europeu.
Hoje, o orçamento europeu corresponde apenas a 1% do PIB europeu, enquanto os orçamentos nacionais totais correspondem a 46% do PIB da União. Além de mísero, é um orçamento deliberadamente intergovernamental, desenhado por uma complicada métrica onde os governos mantêm as rédeas do comando, impedindo uma relação directa entre cidadãos e CE que apenas poderia ser obtida por via fiscal explícita. Os pequenos regedores das capitais europeias têm medo que uma parte do IRS e do IRC vão, sem a sua intermediação, directamente para a constituição de um verdadeiro tesouro europeu.
Se olharmos numa perspectiva de médio prazo, verificamos que o novo quadro financeiro plurianual que está a ser discutido para o período de 2021-2027, ainda é mais pequeno que o anterior: o quadro de 2014-2020 contou com 1,16% do PIB conjunto; o provável para 2021-2027 cairá para 1,11%. A proposta alternativa do Parlamento Europeu, embora suba para 1,3%, é de uma pobreza estratégica confrangedora. Mesmo depois de uma década de crise, a sabedoria política europeia permanece próxima do zero. Com um orçamento de migalhas e uma administração liliputiana de 60 000 funcionários (só o Ministério gaulês das Finanças tem 140 000), a presidente da Comissão Europeia corre o risco de ser uma espécie de guerrilheira a imitar a voz grossa de um marechal comandando inumeráveis grupos de exércitos… Com a ausência de músculo em matéria de finanças públicas, o Pacto Ecológico Europeu será derrotado logo nos primeiros anos. Estando os governos nacionais manietados pelo absurdo Tratado Orçamental, mais preocupado com o défice estrutural do que com o colapso climático da civilização humana, só um verdadeiro orçamento europeu de investimento nesta causa ontológica comum teria hipótese de fazer afluir a si, investimento privado que poderia ser até 10 vezes maior do que o seed money europeu. Enquanto a União Europeia continuar a ser um clube de países governados por economistas sem brilho nem visão, e políticos sem ambição nem grandeza, ficaremos no mesmo sítio, à espera da crise que cobardemente não temos capacidade intelectual nem coragem moral de antecipar e combater.
Sem a existência de um forte sobressalto de cidadania europeia, resiliente e transgeracional, pressinto que o Pacto Ecológico Europeu, ao próximo solavanco do sistema financeiro internacional e europeu, não demorará muito a cair do topo da agenda política. Mais uma vez, gostaria de não ter razão.
Viriato Soromenho-Marques
[ Ler primeira parte AS PROMESSAS DO PACTO ECOLÓGICO EUROPEU ]
Publicado no Jornal de Letras, na edição de 12 de Fevereiro de 2020, p. 33.
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