OS FILHOS, DE LUCY KIRKWOOD – O TEMPO PODE CORTAR COMO UMA LÂMINA

Depois de no ano passado ter apresentado a peça de Caryl Churchill, Só Eu Escapei, o Teatro Aberto terá em exibição até julho a peça de uma jovem dramaturga britânica, Lucy Kirkwood (n. 1983). Os Filhos, onde a temática da crise ambiental, em sentido amplo, volta a ser o tema central. A peça foi estreada em Londres, em novembro de 2016, e tem tido uma merecida boa receção internacional, nomeadamente, nos EUA.

A trama da peça é baseada na transposição para o mundo anglo-saxónico da tragédia causada pelo acidente nuclear de Fukuchima, no Japão, em Março de 2011, quando um grande sismo causou um tsunami, cuja vaga gigantesca de mais de 14 metros de altura se abateu sobre uma central nuclear, temerariamente construída no local errado, contra tudo o que já se sabia de outros eventos semelhantes de que havia claro registo histórico (tive ocasião de escrever várias crónicas a esse propósito, quer na altura, quer depois do acidente). Lucy Kirkwood ficou particularmente impressionada com um episódio ocorrido imediatamente após o acidente. Para tentar minimizar os efeitos negativos, a empresa tinha de contar com um punhado de valorosos engenheiros para intervenção no local. Tal como aconteceu em Chernobyl, as equipas de intervenção foram expostas a radiações elevadíssimas que significavam uma quase certeza de contrair mais tarde doenças oncológicas graves. No Japão, um grupo de engenheiros reformados ofereceu-se para substituir o pessoal mais jovem, e com maior esperança de vida, num ato de heroicidade e altruísmo que só pode merecer as escassas palavras que acompanhem um respeitoso silêncio.

A obra é intensíssima. A ação dramática decorre, “aristotelicamente”, como sublinha a autora, num único espaço e em tempo real. O espectador transforma-se em testemunha irrecusável de um triângulo formado por três personagens: Hazel (Maria José Paschoal), Rose (Custódia Gallego) e Robin (João Lagarto). O fio condutor da obra não tem nenhum vestígio de qualquer intenção prosélita, seja ecológica ou ética. O que está em causa é a essência da vida humana: a necessidade de tomar decisões importantes, sob a pressão de circunstâncias que obrigam a uma rapidez particularmente dolorosa. Esta peça surge numa altura de enorme e desditosa atualidade, quando a Europa e o mundo se preparam para fechar os olhos, seguindo em frente com mais centrais nucleares, aumentando a pesadíssima herança que recairá sobre as gerações mais jovens. Mas a força do trabalho de Lucy Kirkwood, e dos magníficos atores que lhe dão vida em cada representação, não está em nenhuma intenção militante ou cívica. Nem sequer numa pedagogia ambiental, pois o nuclear é para ela apenas uma metáfora deste tempo e mundo onde estamos mergulhados. O que a dramaturga pretende é mostrar seres humanos confrontados com os dilemas de um mundo onde já não é possível distinguir natureza de técnica (Jean-Luc Nancy), ou, como sustenta uma das mais poderosas testemunhas de Chernobyl, Svetlana Alexievich, um mundo onde a arrogância da tecnologia fáustica lançou as nossas breves e frágeis vidas humanas, que se medem em dezenas de anos, em rota de colisão com os isótopos radioativos cujo impacto nefasto pode arrastar-se por muitas dezenas de milhares de anos. Citando Svetlana, o acidente de Chernobyl inaugura “uma catástrofe do tempo”, de escalas completamente assimétricas, ao mesmo tempo que inaugura “uma história das catástrofes” que nos estão e continuarão a ser reveladas pela ampulheta de Cronos.

Foi Leibniz (1646-1716) quem chamou a atenção, muito antes dos pesquisadores do inconsciente, para o facto de a nossa mente estar povoada por “pequenas perceções” de que não temos consciência. São quase-representações, que funcionam como uma espécie de espuma, como as algas que vacilam na turbulenta zona entremarés, arrastadas entre as ondas do mar e a areia da praia. Ao ver esta peça, senti que algumas dessas impressões difusas ganharam contornos. Tornaram-se objetos de consciência e, à sua maneira, de conhecimento. Talvez seja esse um dos indicadores de sucesso da arte. Produzir o efeito catártico: redimir, sobretudo mesmo perante aquilo que está fora do campo da salvação.

Ficha Técnica:

Os Filhos, de Lucy Kirkwood. Teatro Aberto

Encenação: Álvaro Correia. Cenário: André Guedes. Figurinos: Ana Paula Rocha. Desenho de Luz: Manuel Abrantes. Sonoplastia: Vitória.

Com: Custódia Galego, João Lagarto e Maria José Paschoal

Viriato Soromenho-Marques

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