Na crónica de 14 de maio previ que a retirada da compra de dívida pública dos Estados-membros da UE no mercado secundário, por parte do BCE, iria repetir o ocorrido há mais de uma dezena de anos atrás, fragmentando a taxa de juro a pagar por cada país no recurso aos mercados financeiros. Um mês depois, aqui estamos com as taxas de juro de Portugal, Espanha ou Itália a afastarem-se perigosamente dos valores de referência da dívida alemã. Para evitar o regresso da zona euro a um estado de turbulência caótica seria indispensável apoiar a união monetária numa união orçamental. Para esta última ser concretizada, são necessárias uma política fiscal concertada e uma coordenação económica entre os países, permitindo combater os choques assimétricos, isto é, proteger os países e regiões, conjuntural ou estruturalmente mais vulneráveis, dos ataques especulativos que ocorrem devido às crónicas debilidades da tortuosa construção do euro. Mas para que possam existir transferências financeiras é necessária uma legitimidade democrática e constitucional, que continua à espera de ser criada. Desde 2016, apesar da clara acalmia da situação, e mesmo depois da razoável resposta inicial à pandemia, não houve coragem nem sabedoria para fazer o que seria necessário. Em vez disso, tivemos as inúteis cimeiras de Macron com Merkel, que deixaram tudo na mesma.
Jean Monnet escreveu que o federalismo europeu não nasceria associado a um nome pessoal, mas à “necessidade” causada por um grande e urgente desafio. Não consigo imaginar uma ocasião mais urgente do que esta, quando se misturam uma pandemia ainda longe de vencida, uma guerra onde, para além da vitimizada Ucrânia, comparecem as maiores potências nucleares, uma já longa marcha da inflação, acelerada pelas sanções à Rússia que atingem sobretudo os países que as promovem, uma crise de refugiados disparada pela guerra, mas que tenderá a aumentar exponencialmente nos próximos meses, quando o impacto da escassez e carestia alimentar levar centenas de milhares de pessoas desesperadas a arriscar a vida na travessia do Mediterrâneo. Mas para perceber a perigosa necessidade de que falava Jean Monnet, seria indispensável saber ler os sinais da sua presença, coisa que manifestamente não parece ser uma competência das elites europeias. As vozes que no Ocidente exortam à paz imperfeita de um cessar-fogo têm sido desprezadas e até insultadas. Sob a batuta dos EUA, que querem aproveitar esta guerra para fazer sangrar Moscovo, com os olhos postos na China, os países europeus estão a comprometer-se numa arriscadíssima estratégia de intensificação do conflito. Inundar a Ucrânia com armas de última geração não vai contribuir para “derrotar a Rússia”, mas sim para aumentar a perda de vidas humanas e de destruição, podendo, no limite, fazer escalar o conflito para o patamar nuclear tático, ou ainda pior.
Há 70 anos, em 27 de maio de 1954, o núcleo inicial do que é hoje a UE, apresentava um ambicioso tratado de Comunidade Europeia de Defesa, que incluía uma Comunidade Política com uma Constituição, um Parlamento bicamaral, um orçamento e uma estrutura de comando comuns, destinada a durar para além da extinção da OTAN. Depois de aprovado nos parlamentos da Alemanha, da Itália e do Benelux, o tratado foi derrotado por uma coligação chauvinista de comunistas e gaulistas em Paris. Cada vez mais o futuro da EU desagua na dolorosa confirmação das oportunidades que não deveriam ter sido perdidas.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 18 de Junho de 2022