O que me parece mais admirável em Sigmund Freud (1856-1939) é a sua transgressão da regra entrópica do envelhecimento intelectual. Em Freud, ao contrário da maioria dos grandes autores, os escritos da fase final da vida, são mais profundos, mais imaginativos, com uma ourivesaria literária mais apurada, e – suprema das vantagens – mais incapazes de serem aprisionados dentro de um sistema fechado. O que é um pesadelo para a maioria dos psicanalistas profissionais, é uma alegria para os leitores independentes desse genial hebreu de Viena! Em 1920, no surpreendente ensaio, Para além do Princípio do Prazer, Freud desarrumou décadas de trabalho anterior para propor uma nova teoria das pulsões, fundada no par antitético: “pulsões de morte” (Todestriebe) versus “pulsões de vida” (Lebenstriebe). Enquanto as pulsões vitais, também designadas como Eros, buscam manter, alargar, complexificar a existência, muito para além da vulgata sexual, as pulsões de morte são destrutivas, dotadas de inumeráveis mecanismos de disfarce e mimetismo. O que elas visam – tanto dentro dos indivíduos como fora deles – é a redução da complexidade, a substituição da diversidade pela mesmidade, e no limite, fazer com que o orgânico regresse ao seu mortal ponto de partida: a natureza inorgânica.
Freud pode ajudar-nos a perceber um dos absurdos do nosso tempo. Se é verdade que o Planeta está a ser destruído pela incapacidade da actual civilização humana habitar em simbiose com a Terra, não deveriam todos os recursos dos Estados e das grandes multinacionais dirigir-se para superar o modelo económico de predação e simplificação dessa frágil rede ecológica, que nos garante o ar, a água, os alimentos, as paisagens? Para proteger tudo aquilo que nos assegura a saúde do corpo e a alegria do espírito? Contudo, não só prossegue o encarniçamento do “crescimento” simplificador, poluidor, que ataca a biodiversidade e o próprio coração climático da Terra, como se multiplicam os investimentos para prolongar indefinidamente a existência de indivíduos singulares, que financiam essas pesquisas. Existem mesmo visionários trans-humanistas que anseiam por viver dentro de supercomputadores numa imortalidade digital! Os mesmos que, egoisticamente, querem ser imortais, alimentam-se da destruição do mundo que deveria pertencer às gerações futuras. A sua cobardia perante a morte é o maior disfarce da afirmação da própria pulsão de morte! Esquecem que a essência da dignidade humana não é a permanência individual, mas a renovação da vida e das suas possibilidades através da esperança trazida pelas novas gerações. Foi isso que Hannah Arendt consagrou na sua categoria filosófica de natalidade: “Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a «Boa Nova»: “Nasceu uma criança entre nós” (H. Arendt, A Condição Humana, Relógio D’ Água, p. 300). Freud estaria, certamente, de acordo com esta triunfante afirmação das pulsões de vida.
Viriato Soromenho-Marques
4 de Janeiro de 2020, “ Os Disfarces da Pulsão de Morte”, Diário de Notícias, p. 19.