OPPENHEIMER E O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE

O filme de Christopher Nolan, Oppenheimer, é mais do que uma biografia sobre um homem extraordinário, que juntou competência científica e escrúpulo ético a uma notável capacidade de liderança na concretização do primeiro caso de Big Science realizado na história humana: o Projeto Manhattan que garantiu aos EUA a vitória na corrida à primeira arma atómica. Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), judeu, cidadão norte-americano, viveu intensamente a revolução da física quântica. Foi a sua notoriedade e o seu conhecimento dessa comunidade fortemente cosmopolita que o levaram a ser convidado para fundar a peça mais crítica para vencer a Alemanha hitleriana na corrida pela bomba atómica: o Laboratório de Los Alamos, onde foi produzido e testado com sucesso o primeiro engenho, em 16 de julho de 1945, escassas semanas antes do bombardeamento de Hiroxima e Nagasaki. O filme mostra-nos a vertiginosa corrida contra o tempo, e a lógica impiedosa da tecnociência contemporânea, onde os mais brilhantes cientistas fazem parte de uma linha de montagem, altamente sofisticada, mas sem acesso a uma visão do processo total, como em qualquer banal linha de montagem fabril.

A bomba atómica assinala também a confirmação dos EUA como potência hegemónica mundial. Apesar do romantismo, que ainda subsiste hoje, quando se fala em carreiras científicas, o que o filme exibe é a sinergia tensa entre os três lados do triângulo que conduziu à dura realidade que o presidente Eisenhower, na sua despedida em 1961, designou como o complexo militar-industrial: uma ciência galvanizada por projetos de tecnologia, destinados a aumentar o poderio bélico do Estado e os lucros do tecido empresarial, em especial da indústria de armamento. O resto são migalhas. Não é por acaso que só em 1958, com apenas alguns milhares de dólares e escassos colaboradores, David Keeling foi capaz de medir com exatidão a concentração de dióxido de carbono na atmosfera, que hoje é o indicador crítico na compreensão das alterações climáticas. Era importante, mas não dava nem lucro nem poderio.

Oppenheimer nunca colocou a sua carreira científica à frente da sua consciência ética. Em 1954, devido à mistura do fanatismo da guerra-fria com as ambições imoderadas de alguns, Oppenheimer foi submetido a um inquérito promovido por Lewis Strauss (1896-1974), poderoso diretor da Comissão de Energia Atómica, que acabaria por lhe retirar o acesso a instalações e documentos reservados. O homem que tinha sido louvado como herói nacional, era agora acusado de falta de patriotismo e de eventual cumplicidade com a URSS. Oppenheimer foi reabilitado, ainda no tempo de J. F. Kennedy, mas importa perceber as razões da conspiração que lhe foi movida. Após 1945, Oppenheimer, consciente do risco gigantesco de proliferação de armas atómicas, favoreceu a criação de limitações internacionais, inclusivamente a reatores nucleares “civis”, opondo-se também à ideia do seu colega Edward Teller de produzir bombas de fusão (Bomba H), mais letais que as de fissão usadas contra o Japão. Os “falcões”, Strauss e Teller uniram-se para derrubar o “pacifista” Oppenheimer O arsenal nuclear mundial seguiu o caminho preconizado por Teller, e hoje poderia arrasar um planeta várias vezes maior do que a Terra. A responsabilidade pelo futuro do mundo, demonstrada por Oppenheimer, nunca fez tanto sentido como hoje, quando a possibilidade de nos autodestruirmos num holocausto bélico é mais realista do que nunca.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias em 9 de setembro de 2023, página 9.

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