ONZE MINUTOS COM LORCA

Na madrugada de 18 de agosto de 1936, com apenas 38 anos de idade, Federico Garcia Lorca foi assassinado pelos rebeldes falangistas numa estrada da sua Granada natal, no primeiro mês da insurreição franquista. Até hoje, o seu corpo não foi encontrado. Os motivos dos assassinos foram vários: Lorca era o símbolo cultural maior da II República espanhola, que os fascistas quiseram destruir; embora não sendo filiado em nenhum partido, e tendo até amigos na ultradireita espanhola, manteve-se sempre fiel a uma democracia aberta e plural; o escritor usou a Grande Cultura como instrumento de ação social junto dos mais pobres, daqueles que, como os ciganos, os judeus, os mouriscos e os negros, eram desprezados e colocados nas margens. Estou convencido, contudo, que há ainda duas razões principais, por ordem crescente: ser homossexual num tempo em que isso constituía um risco mortal; mas, sobretudo, ser a prova viva de que o génio existe, o que pode ser imperdoável para alguma gente. Na casa dos trinta anos, quando milhares de pessoas inteligentes e talentosas estão ainda a dar os primeiros passos nas suas artes prediletas, Lorca, tinha revolucionado a poesia, nela derramando a sua vocação musical, enquanto com a sua dramaturgia entrara de imediato para a galeria dos grandes autores, ao lado dos mestres do Século de Ouro espanhol. Leslie Stainton, autora de uma importante biografia (Lorca: A Dream of Life, 1998), conta que, pouco antes do seu assassinato, quando lhe perguntaram qual das suas obras lhe parecia ser a mais importante, Lorca respondeu estar mais interessado em concretizar as quatro mil ideias que lhe agitavam a imaginação criadora…

O que me impeliu para esta crónica evocativa de Lorca foi o encontro acidental com uma belíssima exposição, que se encontra patente até ao início do mês de novembro, na Casa do Cabido de Santiago de Compostela, muito perto da Catedral onde todos os dias chegam centenas de peregrinos. Sob o título de Lorca en Compostela, esta exposição, comissariada pelo editor e escritor Henrique Alvarellos, reúne em dez secções distintas, oitenta registos diversos associados à profunda ligação de Lorca à Galiza, e a Santiago em particular. Ali se encontram, fotos, cartas, desenhos do poeta, gravações, e outros objetos. Importa não esquecer que uma das últimas publicações de Lorca foram os seus Seis Poemas Galegos (1936). A ligação a Portugal também está presente, num testemunho de um amigo, onde se afirma conhecer Lorca, de cor, poemas de Sá de Miranda e Camões. Mas, o mais comovente é um pequeno filme mudo de 11 minutos, sobre a passagem pela Galiza, no verão de 1932, da Companhia de Teatro Universitário, A Barraca, que Lorca codirigiu entre 1931 e 1936. Essa companhia recebia apoio do Ministério da Educação da República, cujo titular foi Fernando de los Rios (que também seria fuzilado pelos franquistas). O filme descreve a viagem das 3 camionetas d’A Barraca, pelas estradas de terra batida de Compostela, trazendo nelas o palco, os cenários e a maquinaria. A ação “subversiva” de Lorca e seus companheiros consistia em levar a camponeses tisnados pelo sol as palavras dos clássicos, como Lope de Veja, ou Cervantes. Não há registos áudios da voz de Lorca, mas podemos vê-lo no papel de um dos personagens de La Vida es Sueño (1635), de Calderón de la Barca. Visitar esta exposição pode ser uma forma modesta de reparação deste crime contra a humanidade cujos perpetradores morreram sem castigo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias em 2 de setembro de 2023, página 10.

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