“Como estará o país e a confiança no futuro dos portugueses em 2030?”. Esta poderia ser uma pergunta, reveladora e perturbadora, a colocar numa das aberturas destes duelos que têm caracterizado a presente campanha eleitoral. Importa reconhecer que a ausência de arruadas, por motivos sanitários, tem submetido os líderes partidários a um duro teste de preparação e disciplina, saldando-se pela abordagem de uma invulgar quantidade de temas, mais ou menos substantivos. Comparativamente com outras campanhas eleitorais (lembro-me de ter tropeçado, sem intenção, em episódios da campanha de 1994 para o Congresso dos EUA, que apenas poderiam ser classificados como difamações abjectas), a atmosfera política lusa parece bastante saudável. Contudo, isso não chega para que a pergunta (e ainda menos as respostas) sobre 2030 venha a entrar na campanha.
Quanto mais dados e cenários a pesquisa científica nos revela acerca do perturbante futuro que nos aguarda, mais o discurso político se recusa a enfrentá-lo. Do mesmo modo que na sátira cinematográfica da Netflix, Não Olhes para Cima, os “negacionistas” da colisão iminente de um asteróide com a Terra se recusavam a olhar para ele. Em Portugal, a questão nunca foi a de uma negação do óbvio, organizada e estridente, como ocorre noutros países, mas mais a de uma estratégia de evitação. O método do discurso político é o da redução cirúrgica. São precisos temas, onde o actor político não se exponha a perder a face, manifestando dúvidas e/ou falta de controlo da situação. Ao contrário das tecnologias digitais da “realidade aumentada”, que alargam as fronteiras da consciência nos universos virtuais, a política, ao lidar com o mundo físico concreto tem de o tornar suportável, construindo o que poderemos designar como uma “realidade diminuída”.
É pena, no entanto, que o Portugal de 2030 não entre nos debates políticos do Portugal de 2022. Num futuro onde os eventos extremos decorrentes das alterações climáticas, a face mais visível da crise global do ambiente, vão fazer perigar a vida e a propriedade de muitos cidadãos, seria importante aprofundar as consequências de algumas teses sobre o Estado e a política fiscal. Propor que o Estado se retire, ainda mais, de uma actividade reguladora, para dar protagonismo ao mercado, ou propor a requentada receita neoliberal de uma taxa única para o IRS, são ideias impertinentes, que nos países onde foram aplicadas só contribuíram para a degradação do ambiente e o aumento das desigualdades. Só pessoas distraídas é que podem ignorar que foi a contra-revolução neoliberal, começada na década de 1970, a força motora desta globalização, marcada pela desregulação da protecção ambiental e social, Assinalada também pelo aparecimento de autênticos colossos de poder e dinheiro, como Zuckerberg ou Bezos, apenas possíveis pela cumplicidade da política, também ela transformada numa mercadoria, à disposição da melhor oferta. Nos últimos 50 anos, o triunfo avassalador do crescimento exponencial extractivista, transformou mais radicalmente o software ecológico deste planeta do que o cúmulo milenar da história humana precedente. Os desalojados das cheias e dos incêndios, os refugiados do litoral, quando largas zonas se tornarem inabitáveis, os agricultores que não resistam às sucessivas calamidades meteorológicas, esperarão pelo apoio de um Estado capaz e justo. Não quererão ver a sua tragédia reduzida a mais um nicho de mercado.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, em 15 de Janeiro de 2022, p. 10.