OLHAR EM FRENTE

Um dos principais indicadores do caminho que a recuperação económica vai seguir, tanto em Portugal como na Europa, encontra-se no futuro da aviação civil (doravante AC). O título deste artigo recicla a infeliz gafe da directora-geral da Saúde, numa recente conferência de imprensa, tentando justificar a orientação europeia que vai permitir os aviões voltarem a voar lotados, a partir de 1 de Junho (anulando o limite de dois terços estipulado pelo governo português numa portaria de 2 de Maio). Não se começa bem. Na verdade, mesmo que os passageiros “olhassem em frente” durante toda a viagem, é difícil explicar esta excepção sanitária em relação a outros espaços fechados e outros meios de transporte, sem recorrer ao antigo estatuto de privilégio da AC.

A AC é um daqueles sectores que mostra como também na economia de mercado há uns actores que são mais iguais do que outros. Na maioria dos países europeus (ao contrário do que ocorre nos EUA, Austrália, Japão e Canadá) o combustível aéreo (querosene ou jet-fuel) e os bilhetes são isentos de impostos (o nosso ISP e o IVA). A competição desleal é conseguida através da penalização de outros modos de transporte (por exemplo, a ferrovia como alternativa aos voos Lisboa – Porto), mas sobretudo através de uma imperdoável externalização do impacto ambiental e climático da aviação. A AC triplicou os passageiros entre 2004 e 2019, correspondendo a sua pegada a 12% das emissões globais de gases de efeito de estufa do sector dos transportes. Mesmo aqui, estes números beneficiam da conveniente exclusão “política” dos óxidos de azoto (NOx) libertados a elevada altitude, que, sendo contabilizados fariam saltar o impacto real da AC na emergência climática de 2% para entre 4 e 8% (4.º Relatório do IPCC).

A AC está numa dupla rota de colisão com a possibilidade de um futuro humano viável na Terra. Não só contribui crescentemente para o caos climático do planeta, como também foi e será o principal veículo de transmissão das próximas pandemias, como a Covid-19 tragicamente já o ilustrou. Por todo o mundo os cidadãos estão a endividar-se, através dos Estados, para salvar as companhias aéreas. Se a UE quiser provar que é séria a sua aposta num Pacto Ecológico, que inclui retirar os privilégios à AC, então é inevitável que as ajudas de Estado impliquem nacionalizações, ou entradas substanciais no capital das companhias, com uma activa determinação de estratégias que reduzam as frotas e internalizem os danos ambientais nos preços, também em harmonia com a política europeia de descarbonização da economia. Se a salvação da humanidade fosse uma área de negócio rentável, então os últimos 40 anos de febre neoliberal já teriam resolvido o problema, em vez de nos terem conduzido ao abismo de um planeta que poderá tornar-se inabitável nas próximas décadas. Ajudar a TAP só fará sentido se o Estado – como proprietário único ou sócio dominante – despertar da inaceitável letargia dos últimos anos, olhando de frente o futuro, colocando o interesse público no coração da viabilização da empresa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de dia 30 de Maio de 2020, página 18.

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