No seu discurso de 17 de Janeiro de 1961, Dwight D. Eisenhower (1890-1969) despediu-se do povo norte-americano depois de dois mandatos na Presidência dos EUA (1953-1961). Eisenhower não precisaria de ter sido presidente para ficar na história do século XX, pois o seu papel como chefe supremo das Forças Aliadas na Europa foi decisivo para a vitória sobre a Alemanha hitleriana, sobretudo para a arriscada operação de desembarque na Normandia em Junho de 1944. Contudo, da sua acção presidencial considero de enorme relevância estas últimas e breves palavras de adeus, pois alertam para três ameaças que, infelizmente, não só não foram evitadas, como fazem parte dos imensos problemas que nos afectam como comunidade humana neste periclitante século XXI. Os três avisos, que colocam sérios riscos à viabilidade da democracia e à própria sobrevivência física colectiva, são os seguintes: 1. O perigo do abuso de poder pelo recentemente criado complexo industrial-militar norte-americano; 2. O perigo de a política pública ficar refém de uma “elite técnico-científica”; 3. O perigo de injustiça entre gerações. Hoje gostaria de me ater a este último alerta.
É útil colocar Eisenhower em discurso directo: “À medida que perscrutamos o futuro da sociedade, nós (…) devemosevitar o impulso de viver apenas para o hoje, pilhando, para o nossoconforto e conveniência, os recursos preciosos de amanhã. Nós não podemoshipotecar os bens materiais de nossos netos sem arriscar a perdatambém de sua herança política e espiritual. Queremos que a democraciasobreviva por todas as gerações vindouras, e não que se transforme no insolvente fantasma de amanhã.” Muito embora não tenha sido um presidente ousado em matéria ambiental (embora tenha aumentado as áreas protegidas e interditado a prospecção de petróleo em vastas regiões do Alasca), Eisenhower mostra nestas palavras a clara consciência da crise ecológica que se preparava e que cresceu para além de todos os limites nestes últimos 60 anos. Recordar estas palavras, confrontando-as com a hodierna realidade mundial, revelada pelos constantes relatórios sobre o estado do clima e do ambiente em geral, demonstra bem o acerto do perigo que o seu alerta procurava evitar. Certamente que Ike, como era familiarmente conhecido, ficaria escandalizado por saber que muitos presidentes do seu Partido Republicano (com a curiosa excepção de Nixon), tudo fizeram para conduzir os EUA e o planeta ao abismo onde apenas começámos a mergulhar. Reagan, que destruiu todos os passos ambientais positivos dados por Carter, os dois presidentes Bush, em especial o filho, um inimigo da acção climática e um belicista irresponsável. Com Trump – uma personalidade com traços comportamentais que entram bem na categoria de delinquente – concretiza-se a mais original e derradeira parte do aviso de Eisenhower: se destruirmos o ambiente natural das gerações futuras serão mínimas as possibilidades de sobrevivência da herança política e espiritual de que depende a democracia. As imagens das multidões incitadas por Trump, saqueando o Capitólio, uma mistura de descamisados e enragés, intoxicados por uma fúria tribal totalmente hostil ao espaço público plural, fazem temer pela própria integridade futura dos EUA.
Mas ainda é muito cedo para assimilarmos em plenitude o significado e consequências de, pela primeira vez na história, o chão dos ainda não nascidos ter sido comprometido por aqueles que o deveriam garantir e proteger.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 4 de Setembro de 2021