Cumpriram-se ontem 206 anos sobre a tomada de posse, em Washington, de José Correia da Serra como Ministro Plenipotenciário de Portugal nos EUA (lugar que ocupou entre 1816 e 1820). Na altura em que se celebram dois séculos sobre a plena independência do Brasil, será interessante revisitar um dos episódios menos conhecidos da radical metamorfose na visão do mundo e respetiva política externa, que a mudança da capital portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro implicou.
Rio, capital do império português
Podemos começar a nossa história em 23 de janeiro de 1808, com a chegada à Bahia dos 36 navios que salvaram a corte portuguesa de cair nas mãos de Junot, evitando que a monarquia lusa se tornasse em mais um troféu de Napoleão. Contudo, o que sucedeu foi mais do que uma fuga, pois operou uma mudança sísmica em termos geopolíticos: Portugal seria progressivamente transformado num país colonial invertido, orientado por uma visão da política internacional alimentada, não do ponto de vista da metrópole, mas a partir da nova e belíssima capital do Reino, o Rio de Janeiro. Ao contrário das expectativas de muitos diplomatas estrangeiros, o Príncipe Regente, depois de fixar arraiais no Brasil, não se limitou a aguardar que as forças anglo-lusas expulsassem os invasores franceses do retângulo continental português para regressar a Lisboa. Pelo contrário, D. João VI calibrou a sua diplomacia e a sua ação militar em função de objetivos estratégicos que visavam fortalecer o Brasil. Entre eles destacam-se a anexação retaliatória da Guiana francesa e as longas guerras no Sul, alargando o território do Brasil na região do Rio da Prata, através das campanhas de 1811, 1812 e 1816.
Apesar da estrutural dependência de Portugal face ao Reino Unido, a verdade é que D. João VI não só recusou embarcar nos navios de regresso que Sua Majestade britânica pusera à sua disposição, sob o comando do vice-almirante John Beresford, como promulgou a Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 em que se declarava a abolição do estatuto colonial do Brasil, refundando o Estado através da criação do “Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves”. Só a revolução liberal do Porto de 1820 demoveria o rei, mesmo assim com muita dificuldade, da sua visível vontade de permanecer no Brasil.
Portugal e EUA: tensões crescentes
Além da singularidade de uma metrópole europeia governada a partir da sua colónia, a presença em pessoa da monarquia portuguesa em solo americano estava em contraciclo do crescente poder dos EUA, potência republicana e federal interessada em afastar completamente a Europa do Novo Mundo.
Importa recordar que Portugal foi um dos três Estados que reconheceram a independência dos EUA mesmo antes da Grã-Bretanha, o principal aliado estratégico de Lisboa, ter aceitado a soberania das suas colónias rebeldes através da assinatura do Tratado de Paris, em 1783. (I) Contudo as relações entre Portugal e o novo país estiveram longe de ser isentas de dificuldades. No mesmo dia da Declaração de Independência, proclamada em Filadélfia, o governo do Marquês de Pombal bloqueava o acesso aos portos portugueses às embarcações das colónias rebeldes da América. A medida produzia consequências negativas para os interesses comerciais das duas partes; contudo, ela refletia a difícil situação em que Portugal se encontrava. Se, por um lado, Madrid e Paris conspiravam a favor da Revolução Americana para enfraquecer os interesses de Londres, tentando a França uma reparação pela pesada derrota na Guerra dos Sete Anos (1757-1763), por outro lado, os aliados britânicos de D. José I não pareciam muito dispostos a respeitar o estatuto de neutralidade procurado pela diplomacia de Lisboa. (II) O risco de um alargamento à Europa do conflito na América poderia ser terrível para Portugal caso a Espanha, apoiada pela França, resolvesse invadir o nosso país. Acresce ainda que Lisboa não poderia esquecer o risco representado para o futuro do Brasil, a joia do império colonial português, pelo possível alastrar do exemplo emancipador dos EUA, como de facto viria a suceder alguns anos mais tarde. (III)
Mesmo antes da mudança da capital portuguesa para o Rio, os dados estratégicos estavam lançados para um longo período de hostilidade funcional entre os dois países. No entanto, o que poderia ter sido uma situação de colisão acabou por ser consideravelmente suavizada pela figura do quarto representante de Portugal nos EUA.
Correia da Serra e James Monroe: o choque inevitável
O Abade José Correia da Serra (1750-1823) é uma das mais admiráveis figuras das Luzes e do período revolucionário posterior, com uma reputação cosmopolita alargada. Cofundador em 1779 da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), sábio de múltiplos talentos, botânico e naturalista de grande mérito, uma personalidade longamente familiarizada com a realidade política e cultural dos EUA, amigo de alguns dos seus mais altos dirigentes políticos, entre os quais se contavam os presidentes Thomas Jefferson e James Madison. Na sua estadia de oito anos em solo americano (1812-1820), Correia da Serra estabeleceu uma relação particularmente afetuosa com Jefferson. Este reservava ao sábio português um quarto especial na sua mansão em Monticello, que era conhecido como “the Abbé”s room”. (IV)
A simpatia e atenção de Correia da Serra para com os EUA manifestaram-se muito antes da sua missão diplomática, como fica comprovado pelo facto de ter sido Correia da Serra, então Secretário da ACL, a proferir o Elogio de Benjamin Franklin, a 4 de julho de 1791. Nesse texto, ele revela um notável conhecimento não só da personalidade daquele que designa como um dos “patriarcas-fundadores” do novo país, como uma grande sensibilidade para a inovação política em gestação na moderna união federal de além-Atlântico. (V)
A atitude determinada e confiante, talvez em demasia, de Correia da Serra na véspera de ocupar o seu posto diplomático nos EUA está bem patente na carta pessoal, datada de 19 de julho de 1816, que enviou ao Presidente James Madison. Nessa missiva Correia da Serra confessa a sua esperança fundamental para o futuro:
“(…) tenho a firme expectativa de que – durante a minha missão, pelo menos – o ministro português será tido pelos Estados Unidos como uma espécie de ministro de família. As nossas nações são agora de facto ambas potências americanas e serão sempre as duas principais, cada uma na sua parte do Novo Continente.” (VI)
O que é intrigante na posição de Correia da Serra é a sua ousadia na sobreavaliação do peso de Portugal, mesmo face a uns Estados Unidos ainda na alvorada do seu poderio, e a diplomática recusa em silenciar a inevitável hostilidade que o projeto de transportar uma monarquia europeia para a América inevitavelmente acarretaria por parte de um país firmemente republicano e anticolonial. Por outras palavras, o que Correia da Serra pretendeu entre 1816 e 1820, para além da gestão de inúmeras crises relacionadas com os ataques de corsários e rivalidades comerciais, foi defender, junto dos presidentes Madison e Monroe, a visão grandiosa, mas insustentável, de um sistema internacional no Novo Mundo onde os EUA e Portugal seriam os dois agentes essenciais na balança de poder, o primeiro a Norte e o segundo a Sul.
John Quincy Adams – na condição de Secretário de Estado do presidente James Monroe, a quem sucederia no cargo presidencial – seria também um dos arquitetos da famosa Doutrina Monroe, apresentada pelo presidente ao Congresso em dezembro de 1823. O esboço dessa doutrina está bem patente na crítica que Quincy Adams faz às pretensões lusitanas num resumo, destinado a Monroe, de uma conversa tida com o embaixador Correia da Serra, em setembro de 1820:
“Acrescentei [escreve Adams] que o abade mais de uma vez abordou este assunto de um sistema americano a ser concertado entre as duas potências do hemisfério ocidental, referindo-se aos Estados Unidos e Portugal. Nunca perturbei o abade no seu romancear; mas Portugal e os Estados Unidos são tanto as duas grandes potências americanas como uma chalupa e o Columbus são dois grandes navios de batalha; e quanto a um sistema americano independente da Europa, Portugal não é nem americano nem independente. Enquanto Portugal reconhecer a Casa de Bragança como seu soberano enquanto a Casa de Bragança for europeia e não americana, Portugal será um satélite e não um planeta primário.” (VII)
Mesmo depois de a independência do Brasil, em setembro de 1822, ter deitado por terra o sonho português de se transformar numa potência americana, a verdade é que John Quincy Adams não deixou de manifestar a profunda hostilidade dos EUA face à possibilidade de manutenção de uma monarquia imperial de raiz europeia, como a de D. Pedro I, em terras republicanas. Escrevia, enfaticamente, esse estadista norte-americano em 1823:
“o hemisfério republicano não suportará nem imperador nem rei nas suas paragens.” (VIII)
O tempo da Europa na América estava terminado. No futuro, a influência e o poder viajariam em sentido inverso, do Novo para o Velho Mundo.
NOTAS
I – Os outros dois países foram a França e a Holanda.
II – Uma documentada análise sobre os meandros diplomáticos das relações entre Portugal e os EUA neste período pertence ao Embaixador José Calvet de Magalhães, História das Relações Diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos da América (1776-1911), Mem Martins, Publicações Europa-América, 1991, p. 17 e sgs..
III – Os insurretos da malograda revolta anticolonial de Minas Gerais (1789) terão sido recebidos por Thomas Jefferson, em Paris, no ano de 1786, quando este era o embaixador dos EUA na corte de Luís XVI: David Birmingham, História de Portugal. Uma Perspectiva Mundial, tradução de Ana Mafalda Tello, Lisboa, Terramar, 1998, pp. 126-129.
IV – Abade José Correia da Serra, Documentos do seu Arquivo, Lisboa, FLAD, 1997, p. 66.
V – Franklin foi eleito académico correspondente da Academia de Lisboa em 9 de outubro de 1782. Veja-se: Abade José Correia da Serra, Elogio de Benjamin Franklin, Lisboa, FLAD, 1996, pp. 9-22.
VI – Citado por José Calvet de Magalhães, op. cit., p.76.
VII – Citado por José Calvet de Magalhães, op. cit., p. 90. O Columbus era um poderoso navio de guerra que havia entrado ao serviço da marinha dos EUA em março de 1819. John Quincy Adams chegou a ser nomeado pelo Presidente George Washington para o posto de Embaixador em Lisboa. O seu pai, o presidente John Adams, alteraria o destino do filho para a embaixada dos EUA em Berlim, em 1797.
VIII – Citado por José Calvet de Magalhães, op. cit., p.74.
Publicado no Diário de Notícias em 23 de julho de 2022, páginas 20 e 21.