No passado dia 28 foi conhecida a II Parte do 6.º Relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, mostrando um Planeta em rápida degradação, anunciando um futuro de regressão e insegurança generalizadas. A absurda tempestade de fogo e aço que se abateu sobre a Ucrânia apagou a relevância deste relatório, que contém a mais vital mensagem para o nosso tempo.
Escrevi, na semana passada, que desde 1962 (crise dos mísseis de Cuba) o perigo de escalada nuclear nunca esteve tão iminente. Para isso, concorrem duas razões principais. A primeira, prende-se com a evolução da doutrina militar russa desde o fim da URSS, e a segunda deriva da conduta actual de Putin. Durante a guerra-fria, sobretudo a partir do final dos anos 50, quando Moscovo obteve uma suficiente paridade atómica com Washington, o arsenal nuclear funcionou, essencialmente, como um factor de dissuasão de última instância. Moscovo chegou mesmo a prometer não usar jamais a arma atómica em primeiro lugar. Em 1993, no tempo de Ieltsin, a nova doutrina abandonou o princípio de não-primeiro uso, mas reservou a arma nuclear apenas para casos em que “a existência da Federação Russa” estivesse ameaçada. A mudança mais significativa ocorreu em 2000, com uma nova doutrina, que no Ocidente é conhecida como “escalar para desescalar” (escalate to de-escalate). Essa concepção tem uma relação directa com a consciência russa da supremacia crescente e esmagadora dos EUA e da NATO em forças convencionais, tornada evidente tanto na Guerra do Golfo (1991) como na intervenção contra a Sérvia (1999). O conceito foi desenvolvido por vários estrategistas (V.I. Levshin, A.V. Nedelin e M.E. Sosnovskii) na revista militar Voennaia Mysl, em 1999, quando Putin era o Secretário do Conselho de Segurança da Rússia, passando a doutrina em 2000, já com Putin na presidência. A diferença radical consiste na afirmação de que armas nucleares tácticas (de baixa intensidade e curto raio de acção) poderão ser usadas num quadro de guerra convencional, para dissuadir um inimigo superior e evitar a derrota.
Contudo, no que diz respeito à actual conduta de Putin, a possibilidade de serem usadas armas nucleares tácticas na Ucrânia, só se colocaria numa situação em que uma derrota russa fosse inevitável devido a uma intervenção de forças convencionais da NATO, ou a ela ligadas. Putin recordou isso ao colocar o dispositivo nuclear em alerta. Apesar do que parece ter sido uma subestimação inicial da capacidade de resistência ucraniana e uma sobrestimação do desempenho das forças convencionais russas, não parece provável que a capitulação formal das forças militares ucranianas possa ser evitada nas próximas semanas. Mas a vitória de Putin deverá ter um sabor amargo. Uma NATO reforçada, uma atmosfera externa hostil contra a Rússia, um aumento do descontentamento popular contra a sua autocracia, a intranquilidade na sua base de apoio oligárquica, proporcional à duração das sanções em vigor, empobrecimento das condições de vida do povo russo num quadro de cerco económico. Putin é leitor de Clausewitz, e sabe que o sentido da guerra se mede pelos objectivos políticos que consegue atingir. Neste caso, para além de servir o narcisismo do senhor do Kremlin, não se percebe que ganho político terá a Rússia com uma vitória que lhe destruirá por muito tempo as pontes com grande parte das outras nações. Precisamente, num tempo em que a cooperação é um imperativo de sobrevivência.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias ed. de 5 de Março de 2022