O PROGRESSO EM PLANO INCLINADO

Os últimos dois anos têm sido caracterizados pela uma visibilidade crescente dos temas da crise ambiental e climática na agenda mediática, mas também no horizonte existencial das pessoas. Os portugueses que o digam, agora que, na literatura científica sobre incêndios, se fala em “portugalizar” quando se referem os futuros mega-incêndios de 6.ª geração, que tiveram o seu baptismo em Portugal, em especial no dantesco dia 15 de Outubro de 2017.

A verdade é que a moderna civilização tecnocientífica, apetrechada com um motor turbo chamado economia de mercado, e aditivada com o chumbo da ideologia neoliberal, já nos levou à derrota colectiva no que toca à possibilidade de uma habitação humana harmoniosa da Terra. A tecnosfera entrou em colisão com os ecossistemas, danificando de modo irreversível os limites ecológicos de suporte da exuberância e complexidade tanto da biosfera como da própria noosfera. O “desenvolvimento sustentável”, dito sem reserva crítica, transformou-se num mantra mágico, sem conteúdo correspondente na realidade. O futuro, antes representado por curvas exponenciais de progresso indefinido, aparece, a uma cândida análise racional, como um plano inclinado. Significa isso que devemos baixar os braços e desistir da luta? Muito pelo contrário. O ângulo do plano inclinado fará toda a diferença. Há uma radical distância entre descer o plano, ou precipitar-se nele, caso o mesmo assuma a forma de um abismo. O que acabou em definitivo é o mito destruidor do crescimento infinito. Devorámos o planeta e transformámos em realidade o profético artigo de 1966 do economista Kenneth Boulding, onde se anunciava que a Terra caminharia para a condição de uma nave espacial, onde as duras condições disciplinares de vida dos astronautas romperiam com os abusos e as tropelias da “economia do cow-boy”, baseada no consumo, destrutivo e entrópico, da natureza.

Há uma diferença entre uma derrota com condições e uma derrota incondicional. Infelizmente, há demasiados canalhas morais (estou a usar o conceito com a máxima isenção técnica) – vejam como ficam com alergia só de ouvirem falar em Greta Thunberg – que tudo farão para nos levar a um futuro onde até o canibalismo regressará, como alguns filmes clássicos o anteciparam (Soylent Green, 1973, por exemplo). A maldade ética não se encontra apenas na acção dos “suspeitos do costume”, que se passeiam nos corredores do poder em Washington, Brasília, Manila, Riad ou Londres. Muitas chancelarias, povoadas por gente mais discreta, também faz as contas à sua carreira pessoal (vulgo: “vidinha”), e lá vai dando um jeito para satisfazer as suas clientelas. Até eu me surpreendi ao ler uma informação do FMI que contabilizava os mais recentes subsídios anuais aos combustíveis fósseis em valores astronómicos, equivalendo ao PIB somado da Alemanha e da Espanha (5,2 biliões de dólares: 5 200 000 000 000!!). 6% da riqueza mundial é gasta para tornar competitiva a causa principal da crise climática! Esta “economia que mata” não está viciada em tabaco, mas em drogas duras!

Contra a pulsão de morte que campeia nos decisores políticos e económicos, temos de juntar as forças da pulsão de vida. As medidas de mitigação, redução das emissões, são indispensáveis para que o plano inclinado não se torne abissal. E para a mitigação é indispensável a cooperação internacional, a política externa, os tratados e regimes internacionais. Contudo, e ao mesmo tempo, temos de ter políticas de adaptação, que ajudem a suavizar a descida do declive nas próximas décadas e gerações. E essas são da inteira responsabilidade de cada país, de cada região, de cada cidade. Preservar as reservas hídricas, proteger o solo agrícola, defender a biodiversidade, reordenar a floresta, fazer uma célere transição energética, impedir as construções no litoral e ir preparando o processo de realojamento das populações que perderão as suas casas dentro de 20, 30 ou 40 anos. Todas essas são medidas de política doméstica. Tudo isso depende da vontade dos portugueses. O milenarismo embriagado do crescimento infinito e incondicional morreu. Temos de ter muito cuidado para que a dignidade da condição humana não morra com ele.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 9 de Outubro de 2019, página 28

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