O PONTO CEGO DA NOSSA MODERNIDADE

Num artigo recentemente publicado (em Sete Margens.com), a filósofa Luísa Ribeiro Ferreira, na abertura de um seu texto sobre a actual pandemia de codiv-19, citava longamente Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano e professor na Alemanha: “Cada época tem as suas doenças paradigmáticas (…). Apesar do medo descomunal de uma pandemia gripal, não vivemos presentemente na época viral. Graças ao desenvolvimento da técnica imunológica, já a conseguimos ultrapassar” (A Sociedade do Cansaço, Relógio D´Água, 2014).  A citação revela-nos bem os limites do pensamento perante a capacidade que o real tem sempre de nos surpreender, destruindo as “verdades” que, afinal se revelam preconceitos, mais ou menos sofisticados. Byung-Chul Han é um dos pensadores mais criticamente originais da contemporaneidade, do mesmo modo como o jovem historiador israelita Yuval Noah Harai, autor de três sucessos literários mundiais, é um brilhante e informadíssimo divulgador de ideias e de redes de conexões, que satisfazem o público culto contemporâneo. Contudo, neste momento, a acreditar em muitos textos hostis na imprensa internacional, incluindo a portuguesa, dirigidos sobretudo contra o seu livro Homo Deus (Harvill Secker, 2016) quase que diríamos que muitos leitores se sentem traídos, e pretendem ver devolvido o dinheiro que usaram para pagar os livros do escritor israelita…

Um ponto que não vê nem se deixa ver

Como compreender que estes e muitos outros autores e pensadores, conhecidos pelo seu inconformismo e espírito crítico, tenham desprezado a possibilidade de uma pandemia como a covid-19? Por exemplo, para o filósofo sul-coreano a especificidade do nosso tempo, dominado pelo capitalismo neoliberal, é o processo de internalização da opressão – e da alienação em relação à possibilidade de uma vida onde exista espaço para a deliberação e a escolha – através de um sistema tecnológico, psicológico e laboral que leva o trabalhador (assalariado e não só) a contemplar-se como o empresário de si mesmo. Com isso transforma-se o aumento da produtividade num desafio de optimização, fazendo do ideal de fitness uma religião laica omnipresente – do ginásio ao escritório, passando pelo sexo – que conduz ao estado depressivo generalizado de grande parte da nossa actual existência nas grandes urbes. Por seu turno, Harari não festeja incondicionalmente a megalomania do projecto moderno de divinização humana por via tecnológica. Pelo contrário, o seu vasto ensaio termina com uma forte advertência contra os riscos colocado de pela Inteligência Artificial. O perigo do algoritmo derrotar a consciência. O velho medo da revolta vitoriosa da criatura contra o criador. Do escravo que se torna dono do seu anterior senhor.

O que esta pandemia ajudou a tornar visível foi aquilo que eu designo como o ponto cego da modernidade, que serve de título a esta crónica. Na verdade, o que define a modernidade é a centralidade da tecnociência. Um conceito que não é só científico e tecnológico. Muito mais do que isso, a tecnociência envolve uma auto-interpretação da história e da antropologia filosófica, isto é, do próprio destino da condição humana. Han e Harari, como muitos críticos da modernidade, operavam a partir do interior desse ponto cego, não podendo, por isso mesmo, torná-lo em objecto de análise crítica. Eles, Han e Harari, ficaram prisioneiros dos preconceitos e superstições de uma modernidade perante a qual se julgavam razoavelmente distantes. Algo de semelhante aconteceu com os anarquistas do século XIX. Ao serem inimigos jurados do Estado, acabavam por ser aqueles que mais acreditavam no seu poderio, mesmo que pela negativa. Daí o grande número de reis, presidentes, ministros e príncipes que caíram sob as suas balas e bombas terroristas, da Rússia aos EUA. O ponto cego (não me refiro ao seu significado em oftalmologia), como qualquer automobilista sabe por experiência própria, é aquela pequena fracção de espaço que fica invisível quando olhamos pelo retrovisor, e que tem causado um número incontável de acidentes e vítimas desde que os veículos motorizados começaram a circular pelas estradas. Neste caso, o ponto cego é a invisibilidade que mesmo os olhares críticos enfrentam quando se deixam capturar na fábula de invencibilidade e eficácia da tecnociência moderna. Que a humanidade se encontre encerrada e paralisada devido a mais um invisível coronavírus, é não só um destronar do optimismo de Han em relação ao nosso poderio médico face aos vírus, mas é também um desabar das fantasias acerca de um futuro digital para a condição humana, que Harari e tantos outros partilham. Uns, assustados, Outros, profundamente esperançados.

Regressados ao mundo analógico de carne e osso

A luz lançada sobre o ponto cego da modernidade, destapa os pés de barro da tecnociência. Não, a humanidade jamais fará o upload da sua condição animal e biológica, para o mundo dos algoritmos, que aparece como uma espécie de neoplatonismo para programadores digitais. Aquilo que o covid-19 revela é a situação desesperada de uma humanidade para quem o relógio existencial está numa contagem decrescente cada vez mais sonora. Uma humanidade governada por gente como Trump e Bolsonaro, mas também por líderes de frieza implacável como Putin e Xi Ximping, para não falar dos insignificantes líderes tribais de uma Europa que nem sequer sabe para onde vai, é uma humanidade que dificilmente sobreviverá a um colossal desaire. Somos seres de carne e osso, frágeis até ao extremo da fome e do pânico, com uma cultura científica primitiva e grotesca, mas engalanada com uma arrogância infinita. Uma cultura científica que alimentou o mito de que poderíamos não só viver como “donos e senhores da Natureza”, mas, no limite, dispensando-a. No seu notável livro de 2019, A Terra Inabitável (Lua de Papel, 2019), David Wallace-Wells chamava a atenção para a muito provável relação das próximas epidemias com as alterações climáticas. Wallace-Wells deu como exemplo o misterioso caso do quase desaparecimento de uma espécie asiática de antílope-anão, designada por saiga. Em poucas semanas, durante o mês de Maio de 2015, dois terços destes antílopes apareceram mortos numa área correspondente ao estado da Florida. Depois de muitas hipóteses conspirativas e bizarras, a verdade factual foi apurada: os saigas morreram devido a uma bactéria que vive na sua fauna microbiana interna, a Pasteurella multocida. Esse micróbio vive normalmente alojado nas amígdalas dos saigas. Contudo, em virtude ao aumento da temperatura e da humidade, passou para a corrente sanguínea, destruindo órgãos vitais como o fígado, rins e baço. Fenómenos idênticos, de menor escala, tinham ocorrido em períodos quentes e húmidos em 1981 e 1988. Por mera curiosidade, no organismo humano existem mais bactérias do que células humanas. Sendo que, 99% dessas bactérias não foram ainda estudadas cientificamente. Muito menos, no que respeita ao seu comportamento face às alterações climáticas.

O sonho da Modernidade, mais do que de conhecimento foi de poderio, controlo e previsibilidade. O sonho transformou-se num pesadelo distópico e triturador, de que estamos a viver os primeiros sinais de desmoronamento, com o regresso à tragédia, à incerteza, aos golpes do indeterminismo e às crenças substitutivas do destino. Com toda a franqueza, talvez já seja demasiado tarde para imaginar que será possível um final feliz para todos os corpos, mas ainda podemos recuperar a honra e dignidade de algumas almas. Mas para isso, teremos de derrubar, definitivamente, o bezerro de ouro da tecnociência, deixando os seus incontáveis feiticeiros a falar para o seu umbigo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, die 6 de Maio de 2020, página 27.

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