O POETA A HEROÍNA E O MAGNATA

Manuel Alegre veio a público invectivar o que ele considera ser o perigo de o PS ser dominado pelo PAN, no mesmo dia em que se soube ter o devastador tsunami de Tonga causado mortes. Uma delas chamava-se Angela Glover, uma britânica de 50 anos. Ela e o marido viviam há anos em Tonga, onde geriam um asilo para animais abandonados à espera de adopção. Ambos foram apanhados pela onda gigante por terem descurado a guarda da sua própria vida, no afã de resgatar o maior número possível de animais a seu cargo. O marido conseguiu agarrar-se a uma árvore. Angela não teve a mesma sorte. O seu corpo foi encontrado nesse mesmo dia 18, em que o poeta e histórico militante do PS fez vir a lume a sua prosa.

No referido artigo, Alegre acusa o PAN (esclareço que não milito em partidos, nem é partidária a natureza desta reflexão) de ser um “partido que subverte o primado da pessoa humana e os fundamentos humanistas da nossa sociedade”. Logo a seguir, o poeta explica o alcance desse “primado da pessoa humana”: poder fazer, sem ser perturbado, “o que gosto de fazer, como caçar e pescar”. Como seria o diálogo imaginário entre um poeta armado e uma mulher com uma generosidade maior do que a vida? Como encontrar uma ponte entre duas línguas mutuamente intraduzíveis? Surpreendentemente, recordei-me de uma entrevista concedida pelo grande empresário António Champalimaud (1918-2004) à notável jornalista Maria Elisa Domingues. Sabia que tinha sido há muito tempo, mas devo ter empalidecido quando, pesquisando na RTP Play, pude revisitar essa conversa datada de há quase três décadas (26 01 1993)… Depois de informar que tinha começado a trabalhar aos 19 anos, após a morte de seu pai, Champalimaud revelava ter sido uma espingarda, a sua primeira compra pessoal. Tinha uma grande “paixão pela caça”. Maria Elisa perguntou-lhe se ainda a mantinha. Champalimaud, com uma voz pensativa e emocionada, respondeu negativamente. E aqui transcrevo o seu discurso directo: “deixei de caçar quando percebi que a caça, a fauna, era um bem que era limitado, que estava a ser dizimado, que precisava de ser protegido.”

O conceito de “limite” é a chave para a ponte entre Alegre e Glover. O que está em causa, ao contrário do que pretende Alegre, não é a defesa do humanismo, mas a arrogância do aedo, ao considerar o seu hedonismo cinegético como a pedra de toque da identidade humana. A. Glover era um ser generoso, que abraçava animais e pessoas, como reza um comunicado da sua família. A. Champalimaud, viemos a confirmar mais tarde pela criação da Fundação com o seu nome, também unia o respeito pelos animais à compaixão pelos humanos. Para Glover e Champalimaud, a condição humana implica perceber que não só não estamos sozinhos no planeta, como deveríamos exercer o recente poderio tecnológico da nossa civilização, com responsabilidade e respeito para com os mais vulneráveis, seja gente ou bicho. A humanidade é uma aventura recente, ameaçada agora pela desmesura da sua grosseira avidez. Apesar das nossas boas palavras, o mundo está a ser devastado pelos nossos actos. Hoje a biodiversidade. Amanhã os nossos filhos e netos, pois ninguém pode chamar casa a um desértico chão de ruínas. Por isso, do poeta Manuel Alegre, em vez de um manifesto contra ataques imaginários à sua volúpia venatória, esperaria que oferecesse um canto capaz de abraçar a exangue beleza do mundo e a resiliente vontade de viver de todas as criaturas.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 22 de Janeiro de 2022, página 12.

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