Uma das maneiras mais rigorosas de dividir os habitantes do nosso mundo hodierno será entre aqueles (ainda poucos) que já sabem que vivemos na época existencialmente mais decisiva da história da humanidade, e os outros (a gigantesca maioria), que desconhecem ou subestimam esse facto bruto e incontornável, seja por inocente/negligente ignorância, ou por deliberada e activa recusa de enfrentar os incómodos de uma verdade objectiva tão dolorosa. Para os primeiros, o dia deveria começar com a resposta à pergunta: “o que irei hoje fazer, como parte de um esforço global colectivo, para evitar que a crise ambiental e climática destrua as raízes ecológicas da nossa casa comum, o planeta Terra?”. Para os outros, o dia inicia-se com as alegrias e as tristezas banais (que os primeiros também acumulam) de uma existência liberta de ameaças ontológicas globais. Não admira, por isso, que a questão da higiene moral e mental seja um dos factores em jogo na crise axial do nosso tempo.
O desafio gigantesco em que já estamos mergulhados, faz-nos pagar a todos um preço alto no equilíbrio psicológico e na própria saúde mental. A coragem da lucidez, de quem não desvia os olhos das futuras e ameaçadoras paisagens que se escondem no horizonte destes dias, paga-se com angústia, amargura e o risco de depressão, mais ou mesmo severa. Tal como o antigo combatente sofre do stress pós-traumático de guerra, o cidadão consciente da actual perigosa metamorfose global padece, em linguagem livre, de um stress pré-traumático, um sofrimento por antecipação. Contudo, também me parece que do outro lado, entre aqueles que cultivam a negação activa do real estado objectivo do mundo, também existem danos mentais profundos, mesmo irreversíveis. Não acredito que alguém tenha nascido Trump ou Bolsonaro. Estas criaturas, que mais parecem caricaturas de carne e osso, são o resultado de processos lentos de negação da realidade, que exigem a mutilação moral e a perda de traços mínimos de dignidade e carácter. Daí o seu aspecto maquinal, e o seu discurso repetitivo, simplista, que não parece articulado com nenhum processo de pensamento efectivo e autónomo.
É neste enquadramento, julgo, que o leitor deverá acolher o recentíssimo livro publicado por Christiana Figueres e Tom Rivett-Carnac, O Futuro que Escolhemos. Como Sobreviver à Crise Climática. A autora principal é uma figura mundialmente conhecida da luta contra as alterações climáticas. Depois do fracasso da Conferência Climática de Copenhaga (Dezembro de 2009), Christiana Figueres foi “empurrada” em 2010 pelo então SG das Nações Unidas, Ban Ki-moon, para a tarefa impossível de conseguir um acordo climático, na condição de secretária executiva da Convenção-Quando das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas. Ao fim de 5 anos de desgastante diplomacia, e em grande medida devido à sua convicção contagiante, entusiasmo e inesgotável capacidade de trabalho, Figueres conseguiu levar a bom termo o Acordo de Paris. Como escrevi nessa altura, em Dezembro de 2015, embora o Acordo esteja longe do que seria necessário, estaríamos muito pior sem a existência do quadro de referência que o Acordo, apesar das suas limitações, constitui.
A mensagem deste livro, não ignorando as dificuldades imensas que se colocam entre nós e o objectivo de atingir a neutralidade carbónica em 2050, com a etapa fundamental de reduzir em metade as emissões de gases de estufa, já em 2030, incide na mobilização moral e psicológica de cada um dos leitores para a Revolução mais profunda que a história humana já conheceu: uma mudança radical nos valores e nas acções que conduziram ao nosso actual e insustentável modo de habitação da Terra. Sem receio de serem confundidos com a literatura de auto-ajuda, os autores propõem e analisam uma tripla mudança no nosso “quadro mental”, caracterizada por estes três conceitos fundamentais: “Optimismo teimoso (71 ss.); “Abundância infindável” (85 ss.); Regeneração radical” (99 ss.). O optimismo é definido na proximidade do conceito de esperança em Ernst Bloch: “O optimismo tem a ver com o sermos capazes de identificar intencionalmente o futuro desejado e torná-lo vinculativo para o aproximarmos mais de nós” (75). Por isso, todo o capítulo 3.º é dedicado a visualizar o que poderá ser o mundo, a vida e os valores partilhados em 2050, caso sejamos bem-sucedidos. Um claro contraste com aquilo a que estamos mais habituados, até pelo seu maior grau de probabilidade, que são os cenários catastróficos que resultarão do fracasso da mudança global que teremos de efectuar para sobreviver.
Outra característica definidora deste livro é o estabelecimento de uma cumplicidade prática com os leitores. Os próximos 10 anos serão decisivos para conseguir inverter a rota num horizonte que tem em 2050 o referencial central da neutralidade carbónica. Mas para isso, todos temos de ter as mãos na massa da acção transformadora da realidade. Os autores propõem o seguinte decálogo de acções individuais orientadas no tempo, que sumarizo do seguinte modo: 1) compreender que o mundo antigo (anterior à crise climática) está irremediavelmente perdido; 2) o desgosto por essa perda só não nos paralisará se não o superarmos através de uma visão mobilizadora de futuro; 3) temos de lutar pela verdade factual e material, contra as tribos e interesses instalados das “verdades alternativas”; 4) devemos reconstruir a nossa identidade como cidadãos activos numa sociedade que nos impele a sermos consumidores passivos; 5) urgência de nos libertamos do uso de combustíveis fósseis; 6) dar prioridade ao reconstruir das paisagens e à reflorestação da Terra; 7) investir numa economia limpa e construir os instrumentos e indicadores que nos permitam aferir os progressos realizados; 8) usar a tecnologia de modo responsável e inteligente; 9) libertar as forças e os talentos das mulheres, dando prioridade à igualdade de género; 10) por muito que nos custe, temos de nos “meter na política”, para não sermos vítimas da nossa própria inacção nesse domínio vital.
Este é um livro que não nos sossega a inquietude, mas que nos recorda que é na cooperação e na confiança mútua, no plano das ideias e dos actos, que se pode erguer um optimismo, que, mais do que “teimoso”, é atlético. Alimentado pela fibra de uma ética da solidariedade e da esperança razoável. Termino com uma citação que resume o que está em causa: “A estrada que nos espera é sinuosa. Vivemos num momento de sombras pesadas, mas não há maneira de voltarmos para trás (…) falhar não é uma opção.” (190-191).
Christiana Figueres e Tom Rivett-Carnac, O Futuro que Escolhemos. Como Sobreviver à Crise Climática, tradução e revisão do inglês por Pedro Garcia Rosado e João Assis Gomes, Lisboa, Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2020, 236 pp. 16,60 €.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 21 de Outubro de 2020, página 32
Na base de todas as indústrias, incluindo a do turismo, está o uso intensivo de combustíveis fósseis.
O capitalismo é um sistema dependente. Depende da exploração de recursos do planeta, incluindo a mão-de-obra, que está a ser mercantilizada de novo.
Mas os governos dos Estados (e a UE, já agora) são entidades capitalistas.
As propostas do capitalismo (p.e. carros elétricos) são meros remendos que não terão impacto na solução do “problema”.
O capitalismo terá que ser derrubado, para resolver o “problema climático”.
Se os humanos não o derrubarem, a natureza encarregar-se-á de o fazer. Incêndios, inundações, subida do nível dos mares, secas, tempestades, etc. tornarão inabitáveis cada vez mais território.
O capitalismo não vai cair sem violência.
Muito sofrimento espera esta e as próximas gerações.