O OCIDENTE, A GUERRA DE CIVILIZAÇÕES E O FUTURO

Cada dia que passa, a perspetiva de uma redução da tensão bélica e diplomática capaz de diminuir a probabilidade de um conflito generalizado parece perder terreno. A fragilidade militar demonstrada pela Rússia, quase três meses depois do início da sua invasão da Ucrânia, encoraja os líderes da OTAN, EUA e Grã-Bretanha, a não medirem as palavras, confessando abertamente que o objetivo aliado agora, passará da defesa da Ucrânia para o de derrotar militarmente a Rússia. Embora não surpreenda, é de lamentar que os outros parceiros europeus da OTAN, incluindo a Alemanha e a França (já nem falo do nosso Portugal), se limitem a assinar por baixo esta absurda estratégia de altíssimo risco. Ela aponta, claramente, para a eventualidade de uma escalada nuclear no conflito. Nesse caso, os primeiros países ocidentais a serem atingidos, depois da Ucrânia, seriam países europeus. Só o simples facto de neste momento existirem personalidades, como o antigo comandante da OTAN na Europa (SACEUR), o general Wesley Clark, que consideram como aspecto secundário o eventual uso de armas nucleares táticas, revela o colapso ético e a implosão da razão reinantes na gestão ocidental dos assuntos mundiais. A prudência recomendaria que a agressão russa, responsável por esta guerra com todos os seus flagelos, não fosse usada como pretexto para satisfazer uma agenda de temerária resposta bélica pelo Ocidente, capaz de multiplicar exponencialmente o sofrimento e a destruição. O que precisamos é de calar as armas e não de acender isqueiros junto à bomba de gasolina.

Mesmo que não estivesse em causa a loucura de voltar a usar a categoria de “vitória”, quando estamos mergulhados num conflito em que existem gigantescos arsenais atómicos dos dois lados da contenda, a verdade é que olhando para o mapa-mundo é possível perceber como o Ocidente se está a enganar a si próprio em vários dos pressupostos que orientam a sua conduta. Ao contrário do discurso oficial, que aponta para um consenso internacional na política de sanções e de isolamento da Rússia, o facto é que a maioria dos países e a esmagadora parte da população global, não aderiu às sanções, mesmo condenando a agressão russa. Aliados estratégicos dos EUA, como a Arábia Saudita e Israel mantêm-se fora do “cerco” à Rússia, como quase toda a Ásia, toda a África e quase todas as Américas, com a óbvia exceção do Canadá e dos EUA. No plano económico, as sanções já levaram a Rússia a exigir o pagamento das suas exportações em rublos, no maior desafio ao uso do dólar como moeda universal nas transações internacionais. Ao procurar afirmar a sua força, o modelo de sistema unipolar ocidental parece desequilibrar-se, evidenciando a diferença ente perceção e realidade. A fúria bélica tem mostrado também que o Ocidente não parece melhor do que a Rússia quando se trata da justiça entre gerações. Nesta guerra, para além dos civis e militares já mortos e feridos, a baixa mais significativa é a da luta global contra a crise ambiental e alterações climáticas. Estamos a entregar às gerações mais jovens um futuro cada vez mais inabitável.

Recordar os alertas de Samuel Huntington

Quem não padeça da amnésia que contamina as elites dominantes não deixará de recordar os importantes e sábios avisos deixados por Samuel Huntington (1927-2008) em muitos dos seus textos. Logo em 1993, bem no início do pós guerra-fria, percebendo o exuberante crescimento do triunfalismo que conduziria a impor ao resto do mundo, pela persuasão ou pelas armas, um modelo unipolar de universalismo ocidental, centrado nos EUA, Samuel Huntington recordou, para quem o quisesse escutar, a natureza plural do sistema internacional e a existência de civilizações e culturas – caracterizadas por valores e visões do mundo consolidadas pela história – que o Ocidente teria de respeitar se quisesse preservar o seu poder num planeta onde as relações internacionais se mantivessem pacíficas. Huntington começou com um importante artigo na revista Foreign Affairs, “The Clash of Civilizations?”, no Verão de 1993. Três anos depois, surgiria o seu maior êxito, The Clash of Civilizations. Remaking of World Order, traduzido e editado em Portugal pela Gradiva, em 2001.

É impressionante reler hoje Huntington. As quase três décadas passadas dão-lhe razão no essencial. O Ocidente teria de quebrar o espelho do seu narcisismo, contemplando as 8 ou 9 civilizações que povoam o planeta: “A sobrevivência do Ocidente depende de os americanos reafirmarem a sua identidade ocidental e os ocidentais aceitarem a sua civilização como única, mas não universal (…) Evitar-se-á uma guerra global de civilizações se os dirigentes mundiais aceitarem e cooperarem para manterem o carácter multicivilizacional da política global” (21). Antecipando a trágica escolha ocidental de impor pela via das armas mudanças de regime, supostamente, em nome da democracia e da liberdade, Huntington reconhecia “(…) que a intervenção ocidental nos assuntos das outras civilizações é, provavelmente, a mais perigosa causa de instabilidade e de potencial conflito global num mundo multicivilizacional” (368). Em vez disso, o Autor aconselhava: “uma postura prudente para o Ocidente seria não tentar suster a deslocação do poder, mas aprender a navegar em baixios, a suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura” (367). Ou ainda: “O universalismo ocidental é perigoso para o mundo, porque poderá conduzir a uma grande guerra intercivilizacional entre os Estados-núcleos, e é perigoso para o Ocidente, porque poderá levar à derrota do Ocidente (368).”

Esquecer o essencial

A análise de Huntington projetava-se também sobre os riscos simétricos de uma política multicultural doméstica: “O multiculturalismo promovido internamente ameaça os Estados Unidos e o ocidente; o universalismo promovido no estrangeiro ameaça o Ocidente e o mundo (…) A América multicultural é impossível porque a América não ocidental não é americana. Um mundo multicultural é inevitável porque um império mundial é impossível. A preservação dos Estados Unidos e do Ocidente requer a renovação da identidade ocidental. A segurança do mundo exige a aceitação de um mundo multicultural.” (376).

Em grande medida, o que faltou em Huntington foi o acrescentar de dois aspetos, que são fundamentais no quadro histórico da contemporaneidade. Primeiro: nenhuma guerra de civilizações, a ocorrer, poderá ser ganha, devido às novas armas de destruição maciça. Se tal acontecer, talvez a humanidade como categoria zoológica não desapareça, mas dificilmente fará sentido como categoria cultural. Segundo: a humanidade, no seu pluralismo civilizacional, tem, contudo, um interesse fundamental partilhado: a defesa da nossa casa comum planetária contra as agressões ambientais que a predação economia, comum a todas as culturas, atualmente pratica. O Ocidente falhou completamente na capacidade de desfraldar essa bandeira da sustentabilidade, primeiro para si próprio, e depois para o mundo.

Obra citada: Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Tradução de Henrique M. L. Ribeiro, Lisboa, Gradiva, 2001.

Viriato Soromenho-Marques 7 158c

Publicado no Jornal de Letras, edição de18 de Maio de 2022, p. 26.

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