O turbilhão energético em curso, na sequência da invasão russa da Ucrânia, e das incompetentes sanções ocidentais – particularmente desastrosas para os países europeus como o futuro próximo o revelará – desnudou a escassa adesão à realidade das promessas europeias de liderança na “transição energética”. Recordemos o significado dessa transição no quadro do agora defunto Pacto Ecológico Europeu (anunciado em 2019, e sobre o qual escrevemos vários ensaios no JL): o objetivo seria atingir a neutralidade carbónica da União Europeia em 2050. Para isso, a UE deveria transitar de uma economia ainda dominada pelas fontes fósseis – petróleo, gás natural e carvão – para uma hegemonia esmagadora das fontes renováveis, onde se incluem, com maior relevo, as vertentes eólica, solar e hídrica. Na Europa de 2050, a eletricidade produzida a partir das renováveis seria dominante, as emissões de gases de estufa seriam residuais e cobertas por medidas ativas de compensação. O modo como a iniciativa militar de Putin fez mudar, instantaneamente, o rumo dos dirigentes europeus e cair por terra o discurso “verde” de Joe Biden no início do seu mandato, é revelador de que os discursos de transição energética nunca foram assumidos com autenticidade, sendo essencialmente, um instrumento de retórica política e de marketing empresarial.
Uma das tristes constatações desta guerra é a convergência energética entre inimigos. Tanto a Rússia como os países da OTAN estão agora concentrados em valorizar os seus ativos fósseis. Putin não só salvou a posição central dos hidrocarbonetos na vocação imperial renascida da Rússia, como deu estímulo e conforto a muitos biliões de dólares e euros que andavam inquietos por aterrar em novos investimentos fósseis. A guerra de Putin fez abrir garrafas de champanhe em muitos bancos e fundos de investimento, assim como em muitas reuniões de conselhos de administração. Dos EUA à Arábia Saudita, passando pela Europa e China, há muito dinheiro a ganhar com a intensificação da escalada de caos climático em curso. Com tristeza, vejo o inqualificável desempenho dos Verdes na Alemanha, onde até ao carvão foi deixada rédea solta.
Substituição ou acumulação?O tema é complexo. Possui muitas facetas, mas gostaria de deixar ao leitor duas linhas de reflexão. Uma de natureza histórica e outra de âmbito político-económico. Desde o seu início, a ideia de uma transição energética no sentido da descarbonização implicou sempre um desprezo, ou talvez até mais uma ignorância, da história energética dos últimos 3 séculos. Trabalhos clássicos, como os de William Jevons (The Coal Question, 1865) ou D. Arnot (“Coal and Smoke”, 1866), assim como obras contemporâneas como as de Bruce Podobnick (Global Energy Shifts, TERI, New Delhi, 2008), ou Jean-Baptiste Fressoz & Fabien Locher (Les Révoltes du ciel. Une histoire du changement climatique XVe-XXe siècle, Seuil 2020), oferecem-nos uma visão muito mais fina e matizada das profundas mudanças na estrutura energética da Europa e do mundo.
A ideia de uma “transição” sugere uma lógica linear de substituição de uma fonte energética por outra. Ora, na verdade, o que surpreendemos é sempre uma acumulação de fontes energéticas em vez de uma mudança radical. Se quisermos, poderemos falar de ciclos, mas eles apenas indicam a energia conjunturalmente dominante, não a exclusiva. Vejamos:
O ciclo do Carvão: Entre 10% da energia comercial mundial (1800) e 60% (1913).
O ciclo do petróleo: Entre 5% da energia comercial mundial (1910) e 50% (1970).
O ciclo do gás natural: entre 6% da energia comercial mundial (1974) e 24% (2000).
Fonte: Bruce Podobnick (2008).
Como refere Jean-Baptiste Fressoz (ver gráfico), mesmo o carvão não veio substituir a madeira. O mais intenso uso de madeira, pelo contrário, ocorreu com a mineração do carvão e com a construção dos caminhos de ferro, grandes consumidores de madeira. Do mesmo modo, o carvão nunca foi substituído, nem pelo petróleo, nem pelo gás natural, antes todos eles integraram um mix energético mais volumoso, com a hidroeletricidade, o nuclear e as renováveis.
Consumo mundial de energia primária 1850-2020
O complexo político-económico da energia. Por outro lado, a história da energia também nos revela que não existe um caminho pré-determinado para os sistemas energéticos nacionais ou globais. Eles resultam de escolhas e de alianças entre agentes poderosos. O imperialismo britânico dominou a era da hegemonia do carvão como o imperialismo norte-americano a do petróleo. As escolhas energéticas, até hoje, não tiveram em conta os interesses dos consumidores nem as preocupações ambientais, mas a vontade do complexo político-económico-financeiro-militar que constitui a elite decisora deste planeta, onde, por enquanto, ainda nos consentem a existência.
Infelizmente, o crescimento das renováveis não parece estar em condições de chegar a tempo para remediar a desordem ambiental e climática que está a ser criada no planeta e que poderá arrastar-se por séculos e milénios, transformando a possibilidade de viver no futuro numa autêntica condenação. Lamentavelmente, as renováveis já integram o portefólio das redes de influência e dominação que, com criminosa cumplicidade, construíram a tragédia onde hoje habitamos. Elas ganharam com a génese do caos. Irão também ganhar com o novo nicho de mercado que é o de prometer salvar o que já está fora da esfera da salvação.
Viriato Soromenho-Marques,
Publicado no Jornal de Letras em 10 de Agosto de 2022