O MISTERIOSO EUGÈNE HUZAR

PREMATURO VISIONÁRIO DA CATÁSTROFE TECNOLÓGICA

Em abril de 1855, quando Paris ansiava pela abertura em 15 de maio do mesmo ano da Exposição Universal, dedicada às últimas inovações tecnológicas na agricultura e na indústria, é publicado um opúsculo com um estranho título, em perfeita contracorrente com as grandes expectativas da época: O Fim do Mundo pela Ciência (La Fin du Monde par la Science). O seu autor é um jovem e quase desconhecido advogado, Eugène Huzar (1820-1890). Ao contrário do que se poderia esperar, o livro recebeu um excelente e até entusiástico acolhimento. A obra será traduzida em várias línguas, incluindo o português. O seu autor, encorajado pelo sucesso, voltará em 1857 a publicar um segundo ensaio, perfeitamente articulado com a temática do primeiro, A Árvore da Ciência (L’ Arbre de la Science). Nova receção muito favorável. O autor promete um terceiro título, A Árvore da Vida, que nunca chegou a ser publicado. Ainda em vida, Huzar desaparece num silencioso anonimato, para ser recuperado na atualidade pelo facto de a nossa angustiante situação tornar as obras de Huzar prodigiosamente contemporâneas.

Huzar era um homem muito à frente do seu tempo. A sua escrita causa uma estranha impressão no leitor. Não por ser obscura, mas por possuir uma clareza cujas fontes permanecem, contudo, numa certa penumbra oracular. Huzer parece compreender a natureza íntima do lugar da tecnologia na contemporaneidade, quase intuitivamente, incluindo as suas raízes e provável trajeto. O seu saber não era apenas o resultado do conhecimento científico da época, mas integra sobretudo uma capacidade interpretativa muito abrangente dos fenómenos culturais, incluindo uma leitura comparativa da simbologia das grandes religiões da história universal. Não surpreende que, no final do seu ensaio de 1855, dirigindo-se ao leitor, Huzar escreva: “A civilização ainda não está suficientemente avançada, ainda estamos apenas no alvorecer das coisas, repito, este livro não foi escrito para este século, para si. Outros tempos virão em que o homem, cheio de terror ao ver os prodígios que acontecerão diante de seus olhos, entenderá e terá medo.” (La civilisation n’est point encore assez avancée, nous ne sommes encore qu’à l’aurore des choses, je vous le dis encore, ce livre n’est pas écrit pour ce siècle, pour vous. D’autres temps viendront où l’homme pénétré de terreur à la vue des prodiges qui se passeront sous ses yeux, le comprendra et sera effrayé).(1)

Na visão do mundo de Huzar destaca-se uma filosofia da história cíclica, totalmente no oposto das filosofias lineares e positivas do progresso então dominantes, tanto entre liberais como entre socialistas de todos os matizes. O ensaio de 1855 comporta 3 livros que fazem a viagem do presente para o passado, e deste para o futuro. A hipótese que anima E. Huzar é a de que no passado encontramos uma estrutura dinâmica que se repetirá no presente, culminando dramaticamente no futuro. É aqui que entra a sua hermenêutica da simbólica religiosa. O símbolo da árvore da vida, patente no Livro do Génesis do Velho Testamento encontra ecos noutras tradições religiosas. O seu significado, segundo Huzar, é isento de ambiguidade: representa a tendência humana para procurar através do conhecimento um aumento de poderio através da tecnologia que acabará por se voltar contra si própria, abrindo aqui para o símbolo da serpente que morde a sua própria cauda, que ilustrava a capa da 1.ª edição do seu primeiro ensaio. É isso que o autor escreve logo no prefácio da obra: “podemos concluir hoje, vendo o rápido progresso de nosso tempo, que esse progresso sem precedentes deve um dia conduzir a uma catástrofe planetária, resultante do próprio exagero do poder e da ciência do homem. Então o que foi será, porque o passado é para nós apenas o espelho do futuro.” (…nous pouvons conclure dès aujourd’hui, en voyant les progrès rapides de notre époque, que ces progrès inouïs devront un jour aboutir à une catastrophe planétaire, résultant de l’exagération même de la puissance et de la science de l’homme. Donc, ce qui a été sera, car le passé n’est pour nous que le miroir de l’avenir). Importa salientar que não está em causa um qualquer eterno retorno do mesmo, mas sim a repetição de uma estrutura funcional da história humana. Os atores e as circunstâncias são diferentes, aquilo que se repete são as etapas dramáticas conducentes, depois de uma fase de ascensão e de amadurecimento, a um colapso civilizacional de natureza tecnocientífica. O parentesco, pelo menos parcial, com O. Spengler (1880-1936) é evidente. Huzar está inteiramente a par do surto de inovação tecnológica do seu tempo. Não se limita a conhecê-lo superficialmente. Ele procura-o perceber em detalhe e profundidade. Aliás, uma das fontes da sua hipótese profética resultou, exatamente, de um grande acidente que Huzar testemunhou durante uma experiência de compressão de gases num laboratório universitário. O aparelho de compressão rebentou, transformando o preparador num cadáver sangrento. Huzar confessa, que nesse momento sentiu uma revelação, uma intuição intelectual fulminante que o conduziu à sua tese fundamental de que uma futura “catástrofe planetária” seria inevitável. Este é um autor, ressuscitado pela sempre notável pesquisa do historiador do CNRS de Paris, Jean-Baptiste Fressoz (2), que merece ser revisitado nestas crónicas.


Referências

  1. Huzar, Eugène, La fin du monde par la science, Paris, Librairie de E. Dentu, 1855.https://fr.wikisource.org/wiki/La_fin_du_monde_par_la_science
  1. Fressoz Jean-Baptiste, « Eugène Huzar et l’invention du catastrophisme technologique », Romantisme, 2010/4 n°150, p. 97-103. DOI :10.3917/rom.150.0097

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, 28 de junho de 2023, p. 28.

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