O “METEORITO” QUE FAZ REGRESSAR LUTERO

Ao escutar o Relatório sobre os abusos sexuais cometidos no âmbito das atividades da Igreja Católica (IC), sobretudo por membros do clero, com incidência sobre menores que, tal como os seus pais, deles esperariam educação e proteção, em vez de uma criminosa predação, não me foi possível evitar o aflorar à memória das declarações de Manuel Linda, em abril de 2019. Nessa altura, o ainda bispo do Porto, comparava os abusos cometidos na sua diocese à colisão de um meteorito, não necessitando, pela sua manifesta irrelevância, de qualquer investigação organizada. Afinal, Portugal não goza de qualquer estatuto excecional. Os infernos ocultos de desordem sexual contra crianças não são diferentes daqueles que foram revelados pelos Boston Globe, em 2002, na diocese de Boston. Nem diversos dos sinistros labirintos de perversidade dos relatórios de 2009 (Irlanda) e 2011 (Holanda) que manifestaram o padrão “endémico” dos abusos na IC. Um relatório semelhante, na Austrália, chegava ao ponto de quantificar em 7% o número de sacerdotes da IC que entre 1950 e 2017 tinham cometido crimes de abuso (recomendo aos leitores a consulta dos numerosos artigos que Fernanda Câncio tem dedicado ao assunto nas páginas do DN). No nosso caso, os autores do Relatório estimam numa centena o número de sacerdotes abusadores ainda no ativo. Na verdade, o meteorito da metáfora do bispo do Porto revelou-se como um poderoso asteroide com efeitos demolidores ainda longe de poderem ser avaliados.

Esta Comissão foi nomeada pela IC, mas seria um erro pensar que a responsabilidade pelos passos a seguir à divulgação deste Relatório cabe exclusivamente à IC. Inclino-me para crer que o essencial pertencerá aos três poderes do Estado. É verdade que a IC é autónoma e muito mais antiga que o Estado português, e que este muito lhe deve – contrariamente à “lenda negra” eivada de um certo jacobinismo de que tudo foi mau – desde a fundação do Reino de Portugal. Todavia, o que este Relatório coloca como desafio é a clarificação de zonas cinzentas subsistentes na relação entre o Estado e a Igreja Católica. O que está em causa é impedir a omissão do Estado quando urge uma intervenção mais musculada na defesa de direitos humanos fundamentais de menores e jovens, no quadro das instituições tuteladas pela IC. No fundo, este Relatório desperta a polémica da tese, suscitada por Lutero em 1520, na alvorada da Reforma protestante. Num texto dirigido à nobreza alemã, Lutero criticava os “três muros do papismo”, sendo o primeiro o da superioridade do poder do clero sobre “o poder temporal”. Muito embora a nossa Constituição reconheça a separação entre o Estado e as igrejas (artigo 41.º da CRP), e a IC já não goze do estatuto de “Religião da Nação Portuguesa” que lhe outorgou o artigo 25.º da nossa primeira Constituição, quase liberal, de 1822, a verdade é que sobrevive ainda uma residual condição de privilégio que separa os sacerdotes do cidadão comum na relação com a Justiça. Como diria Lutero, o clero católico goza de um estatuto de “estado ou ordem” (Stand), protegendo a sua “função ou cargo” (Amt) numa espécie de santuário que dificulta a ação da Justiça. Para cumprir o desígnio da plena universalidade da lei, acabando com os resíduos medievais de legislações paralelas, que se reveja o Código Penal e a própria Concordata, se considerado necessário. Depois do Relatório, não dar este passo, seria uma cumplicidade ativa do Estado com a perpetuação de crimes hediondos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 18 de fevereiro 2023, p. 9.

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