Quando a política entra demasiado nas nossas vidas, causando guerra e sofrimento, em vez de paz e justiça, isso significa, quase sempre, que aqueles a quem foram entregues os destinos dos povos estão a trair, por motivos diversos, a confiança que lhes foi depositada. Hoje quero sair desse pior da humanidade – a má política feita por gente que sem ela seria invisível – para dar lugar ao melhor da humanidade, aquela que se transcende pela arte, pela poesia, pelo pensamento.
Noite de estreia da peça de Florian Zeller, O Filho, no Teatro Aberto em Lisboa. Quando o pano caiu na última cena, o público permaneceu num silêncio hirto e comovido, apenas quebrado por um longo e reiterado aplauso, quando os atores se apresentaram, finalmente, perante os espectadores. Depois do imenso sucesso de A Mãe (2010) e de O Pai (2012), O Filho (2018) é claramente a obra mais trágica da trilogia de Zeller. Um enredo simples: um pai (Paulo Pires) separa-se da sua mulher (Cleia Almeida) para começar uma nova relação (Sara Matos). Um filho adolescente (Rui Pedro Silva), vivendo com a mãe, afasta-se da escola e dá sinais de desinteresse pela vida. O pai e a nova companheira recebem o filho, empenhando-se para o apoiar. Só falta o coro para declarar o império do destino… Numa entrevista, Florian Zeller explica como o pai é o agente maior desse processo. Ele está de tal modo convicto da sua culpa que descarta outros apoios, nomeadamente médicos, para o mal do filho, tomando decisões erradas. Diz Zeller: “é ao lutar [o pai] com todas as forças contra o seu destino que o cumpre inescusavelmente.” O excelente desempenho dos atores é servido por uma versão, cenografia e encenação de grande qualidade da responsabilidade de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos.
Nesta semana foi entregue o Prémio Pessoa ao poeta e cirurgião João Luís Barreto Guimarães. Subitamente, o país descobriu uma voz poética, com caminho andado desde 1989, mas que tinha leitores sobretudo fora de fronteiras. Eis o que ele escreveu no Jornal de Letras sobre o seu mais recente livro (Aberto Todos os Dias, Quetzal, 2023), mas que julgo ser válido para o conjunto da sua obra: “Celebração do quotidiano, apologia do milagre de existir, aqui e agora. Júbilo, subtileza, louvor da vida simples. A arte, como resistência”.
António Borges Coelho é certamente o nosso mais notável historiador vivo, como o provam os sete volumes da sua monumental História de Portugal, publicados desde 2010. Antes disso, já avultava uma diversificada obra historiográfica sobre o período da civilização árabe no território português, a Revolução de 1383, a Inquisição em Évora, as raízes da expansão portuguesa, entre outros grandes temas. Aos 94 anos, decide publicar um volume com os seus principais ensaios e traduções no domínio da Filosofia (Espinosa e Leibniz, Caminho, 2023). Trata-se de um volume que combina rigor com elegância literária, capaz de chegar a um vasto público com apetite para aprender com o pensamento de duas figuras que brilham no panteão maior do pensamento ocidental. Foi, aliás, António Borges Coelho quem resolveu, definitivamente, o enigma das origens portuguesas de Bento de Espinosa (1632-1677), desenhando-lhe a sua árvore genealógica, relembrando um período de irracional fanatismo contra os nossos judeus sefarditas, que privou Portugal de muitos dos seus melhores. Se estivermos atentos, vislumbraremos, sob a turbulenta vaidade do mundo, a chama do espírito impedindo a vitória definitiva das trevas.
Publicado no Diário de Notícias, edição de 22 de abril, página 9.