O MAL MORAL EM HORÁRIO NOBRE

Uma das coisas mais perturbantes e universais na preparação militar em tempo de guerra é a “lavagem ao cérebro” que permite transformar civis, educados para comportamentos pacíficos e respeitadores da lei e da ordem, em guerreiros prontos a matar. Todas as guerras, justas e injustas, defensivas ou ofensivas, não dispensam a construção da imagem do “inimigo”, para educar a agressividade que reside bem no miolo mais primitivo do repertório genético da nossa espécie.

Assisti, incrédulo, na rubrica dominical de Paulo Portas na TVI (Global, 29 de Setembro), a um análogo exercício de brutalidade psicológica – exercido sobre os telespectadores pelo antigo ministro dos negócios estrangeiros – desferindo sobre a jovem estudante e activista sueca de 16 anos, Greta Thunberg, uma barragem de acusações. Curiosamente, estas nunca se detiveram sobre as razões da sua causa, mas visaram, desproporcionadamente, lançar uma autêntica fatwa, uma espécie de rasura simbólica da pessoa de Greta. O comentador da TVI seguiu uma tripla linha de ataque: motivos clínicos, admoestações familiares, e censuras comportamentais. Começou por excluir em absoluto qualquer pertinência do conteúdo das observações de Greta, usando como “argumento” indirecto para essa omissão uma longa descrição das características do autismo, como grave patologia psíquica. Prosseguiu, colocando-se no papel de provedor da infância desvalida, vibrando um duro golpe à alegada falta de cuidado para com a sua saúde psicológica, tanto por parte da sua família, bem como de todos aqueles que a têm convidado para expor as suas ideias nas mais altas tribunas mundiais. Concluiu, invectivando Greta pela recente e emocional referência, na Cimeira do Clima, à sua infância perdida. Considerou que isso era uma ingratidão para com a sua família e o seu país, que lhe proporcionaram uma infância desafogada, e um insulto para com os jovens pobres dos países do terceiro mundo. Percebe-se que para Portas, quem tem a barriga cheia deveria permanecer calado e agradecido.

Nem por uma só vez, Paulo Portas se referiu ao significado ontologicamente devastador das alterações climáticas sobre o futuro do planeta e da humanidade inteira, nem ao facto de o exemplo de Greta estar a galvanizar generosamente gente de todas as gerações em todos os países do mundo, até nos paupérrimos, e ter levado o Papa Francisco a dizer, em 14 de Junho passado, perante representantes das grandes companhias globais de energia reunidos no Vaticano: “As futuras gerações vão herdar um mundo em grande medida degradado. Os nossos filhos e netos não deveriam ter de pagar os custos da irresponsabilidade da nossa geração.” Com a inegável inteligência calculadora de que é dotado, Paulo Portas, desqualificou Greta, o que é uma forma de desumanização por exclusão, transformando-a num inimigo que se pode desprezar e até eliminar, pelo menos no plano da consciência. Foi um raro momento em que, sob a máscara de opinião, vislumbrei um flagrante espectáculo de mal moral, transmitido em horário nobre.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 5 de Outubro de 2019, p. 31.

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