O LEGADO AO FUTURO DE GONÇALO RIBEIRO TELLES

(1922-2020)

Poucas políticas públicas no Portugal democrático estarão associadas, na percepção da opinião pública, a um rosto concreto como é o caso da íntima relação entre as políticas de ambiente e ordenamento do território e a personalidade de Gonçalo Ribeiro Telles. Com efeito, Ribeiro Telles assumiu as posições mais relevantes na área ambiental, imediatamente após a tomada do poder pelos militares de Abril. No I governo Provisório foi convidado para subsecretário de Estado do Ambiente, mantendo-se nessas funções durante os II e III governos provisórios. Em Outubro de 1975 ascenderia ao lugar de Secretário de Estado do Ambiente. Interrompe a sua actividade governativa no V governo de Vasco Gonçalves, para reentrar durante o VI governo, chefiado por Pinheiro de Azevedo.

O trabalho desenvolvido nesse período pré-constitucional é caracterizado por Ribeiro Telles nestas palavras, publicadas em 1999: “ (…) assinei decretos-lei referentes à defesa dos melhores solos agrícolas, à defesa do coberto vegetal e do relevo natural, à classificação das áreas adstritas à conservação da natureza e da paisagem“ (Ecologia e Ideologia, coordenação de José Rebelo, Livros e Leituras, 1999, p. 28). As suas actividades como membro do poder executivo estender-se-iam para além do período fundacional da III República. Assim, como líder do Partido Popular Monárquico (PPM), entraria na coligação Aliança Democrática (onde se integravam, como maiores partidos, o PPD-PSD e o CDS). Nesse âmbito, no governo chefiado por Francisco Pinto Balsemão, Ribeiro Telles desempenharia o cargo de Ministro de Estado e da Qualidade de Vida, no VIII Governo Constitucional, entre 1981 e 1983. A sua actuação foi estruturante, na medida em que foi um dos principais criadores da nova ordem jurídico-política ambiental. Na sua herança duradoura destacam-se a criação da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN). Na escala municipal e regional salientam-se importantes instrumentos de ordenamento estratégico, como os Planos Directores Municipais (PDM) e os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT). Mais tarde, em 1987, Ribeiro Telles seria um dos mais activos actores no processo que conduziria à elaboração da primeira Lei de Bases do Ambiente (LBA).

Nas suas funções políticas, Ribeiro Telles assumiu e prolongou o legado de José Correia da Cunha, o mentor e presidente da Comissão Nacional do Ambiente, primeira estrutura na área da governação, criada em 1971, por Marcello Caetano. Antes da instauração da democracia constitucional, Ribeiro Telles tinha-se destacado pelo seu labor como universitário, autor de importantes projectos de arquitectura, e cidadão interveniente, apesar da atmosfera hostil do Estado Novo. Em 1945, com 23 anos de idade, participou com outras personalidades intelectuais relevantes na fundação do Centro Nacional de Cultura (CNC), um espaço público para a realização de grandes debates em torno da cultura e dos diferentes patrimónios nacionais. Numa perspectiva mais directamente política, participou em 1957, ao lado de Francisco Sousa Tavares, na fundação do Movimento dos Monárquicos Independentes. Um dos seus aparecimentos públicos de grande impacto teve lugar na RTP, pouco depois das trágicas cheias da região de Lisboa, em Novembro de 1967, que tiraram a vida a mais de 500 pessoas. Ao contrário do regime, que procurava responsabilizar as forças da Natureza pela enorme perda de vidas humanas, Ribeiro Telles denunciou a desastrosa política urbana, que não se opunha à desarborização das bacias hidrográficas, nem à edificação em cima de leitos de cheia e nas cabeceiras de linhas de água.

Ribeiro Telles representa também a influência marcante do Instituto Superior de Agronomia (ISA), e do Curso Livre de Arquitectura Paisagista, nele introduzido por Caldeira Cabral, em 1942, na formação da primeira geração de construtores da política pública de ambiente em Portugal. Ao lado da Faculdade de Letras de Lisboa, através do seu Departamento de Geografia, e em particular da grande figura que foi Orlando Ribeiro, o ISA constituiu um verdadeiro foco gerador de ideias e actores relevantes para uma cultura de planeamento e ordenamento do território. Por outras palavras, Ribeiro Telles corporiza, também, o fenómeno raro em sociedades atravessadas pelo clientelismo, pela demagogia, pelos grupos de pressão, pela manipulação das instituições por facções minoritárias, da possibilidade de uma política iluminada pelo saber rigoroso, pela disciplina académica, visando traçar rotas de futuro ao serviço do interesse geral numa perspectiva estratégica, de longo prazo.

A visão de Ribeiro Telles, de um Portugal que através do “ecodesenvolvimento” fosse capaz de evitar o calvário de uma industrialização padronizada, com o seu rosário de agressão ambiental e desigualdade social, não se concretizou. O país urbanizou-se de modo brutal, escolheu o pior modelo possível de mobilidade, negligenciou a terra e o mar, abandonou o caminho prudencial, que vem do mais antigos húmus da história nacional, que consiste na prioridade dada a uma ocupação geral do território, centrada na agricultura, a que hoje se poderia acoplar harmoniosamente uma economia de serviços com base na tecnologia digital. Esse modelo de crescimento incompetente produziu a passagem da paisagem rural abandonada à proliferação de monoculturas florestais invasoras, que criaram uma gramática de catástrofe, traduzida no léxico da sazonalidade dos incêndios florestais, que rapidamente se transformou numa lucrativa área de negócios privados. Na crise do euro, a verdade do crescimento insustentável, desligado do nosso solo e do nosso mar, traduziu-se no garrote de gigantescas dívidas, públicas e privadas. A nossa soberania nacional transformou-se numa metáfora, com a nossa ordem constitucional suspensa, presa a um grande labirinto europeu, que continua a ameaçar eclodir com imenso estrondo. Ribeiro Telles parte deste mundo, numa altura em que o país, ainda a lamber as feridas da crise europeia, mergulhou numa colossal pandemia global, também ela de matriz causal vinculada aos desmandos ambientais na relação humana com as outras espécies. Este tempo de incerteza e de angústia social deveria servir para repensar o nosso modelo de economia e de protecção social, Infelizmente, o que vemos é a tentativa desesperada de regressar o mais rapidamente possível à “normalidade”, isto é, à repetição do modo de vida e organização económica que nos conduziu até aqui. Acredito que Ribeiro Telles teria preferido, em alternativa às homenagens nacionais oficiais suscitadas pelo seu falecimento, que o seu ensinamento e o seu exemplo se espelhassem na forma como o país repensa o seu futuro colectivo, perante tantas e tão colossais ameaças ontológicas. A construção de uma habitação sábia e simbiótica da terra/mar como casa comum, quebrando a coluna vertebral de uma “economia que mata”, preconizado por Ribeiro Telles, não é uma questão de opção, mas sim de sobrevivência. Quanto mais tarde o percebermos, maior será o preço a pagar em sofrimento que poderia ser evitado.

Viriato Soromenho-Marques

18 de Novembro de 2020, “Legado ao Futuro”, Jornal de Letras, p. 7.

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Paulo Rodrigues

“Os cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem; o corajoso só uma vez o sabor da morte prova.”
William Shakespeare “Júlio César”.