O LABIRINTO DA VINGANÇA TERMINA NUM ABISMO

Em 4 de novembro de 1995, o primeiro-ministro de Israel e herói da Guerra dos Seis Dias de 1967, Yitzhak Rabin, foi assassinado à saída de uma manifestação a favor da paz entre o Estado de Israel e a OLP. Lembro-me bem, na altura, de sentir a perda imensa que esse homicídio significaria para a paz na região e no mundo. O assassino, Yigal Amir, era um jovem judeu devorado pelo fanatismo religioso, crente na ideia do Grande Israel, uma distopia teológica que só seria possível com a expulsão e/ou genocídio de todos os árabes de uma “terra prometida”, acessível apenas aos escolhidos da sua Revelação. O chefe do atual governo israelita, Netanyahu, não tem um currículo, mas um sinistro cadastro. Não se trata apenas dos casos judiciais por corrupção, mas sim do facto, repetidamente comprovado, de ele ser herdeiro, não do general Yitzhak Rabin, mas do jovem pistoleiro que matou a maior esperança de paz no Médio Oriente desde a fundação do Estado de Israel, em 1948. Netanyahu, possuído por uma insaciável ambição, tem-se aliado precisamente aos fundamentalistas judeus, que, com o apoio dos seus governos, têm usurpado terras e assassinado palestinianos da Cisjordânia para criar mais colonatos ilegais. Rabin conseguiu, nos Acordos de Oslo de 1993, iniciar o processo de paz, com o reconhecimento da OLP de Yasser Arafat, em resposta ao reconhecimento oficial do Estado de Israel pela OLP. Netanyahu, pelo contrário, não hesitou em fazer um pacto com o diabo ao financiar o Hamas com o fito de enfraquecer a OLP, que governa na Cisjordânia. Netanyahu arriscou alimentar o terrorismo contra o seu próprio país, de modo a justificar a impossibilidade de concretizar a solução da ONU de dois Estados para a questão da Palestina.

No dia 7 de outubro não terá sido apenas o Hamas a cometer um erro de cálculo. A surpresa da surtida a partir da grande prisão de Gaza, causando a maior mortandade de judeus depois de 1945, exige explicações de um Netanyahu obnubilado pela tóxica combinação de arrogância e incompetência. A violência hedionda que está a exercer contra milhões de civis na Faixa de Gaza, com predomínio de mulheres e crianças, pretende diluir a sua responsabilidade num mar de sangue. O que está a suceder não é uma legítima defesa contra a agressão sofrida, mas um ato de vingança indiscriminado e desproporcionado contra gente encurralada. A verdadeira ameaça ao futuro do Estado de Israel não é sequer o Hamas, mas a crescente degradação da democracia que Netanyahu e os fundamentalistas têm perpetrado. Quando em 1895, o judeu austro-húngaro, Theodor Herzl (1860-1904), fundou o sionismo político, com o seu livro O Estado Judeu (Der Judenstaat), ele estava a defender-se dos crescentes sinais de ódio na Europa contra os judeus. que desaguariam mais tarde no Holocausto. O Estado sonhado por Herzl, seria laico, plural nas línguas e nas crenças, motivado pela convicção de que só “o conhecimento nos liberta” (Wissenchaft macht uns frei). No Holocausto, a máquina nazi teve a cumplicidade de muita gente anónima, movida pela inveja boçal. Com os seis milhões de judeus exterminados, desapareceu uma notável parte da elite intelectual europeia, cuja falta se continua dolorosamente a sentir. O horror sem remissão do Holocausto não pode, contudo, tornar inimputáveis os desmandos de Netanyahu, nem servir para silenciar o pouco que sobra de decência ética e espírito crítico na Europa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias na edição de 21 de outubro de 2023, página 10.

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