O INCENDIÁRIO E O PATRIARCA

Foi Erasmo de Roterdão quem no seu Elogio da Loucura (1509) cunhou a melhor definição política de Povo, chamando-lhe “esse enorme e poderoso animal”. Ao contrário do que pretendem os sedutores, os demagogos, ou os leitores precipitados de Rousseau, o povo também se engana. O “poderoso animal” às vezes equivoca-se na escolha dos seus líderes. No Novo Mundo, em pouco tempo, foram cometidos dois erros políticos pelos povos dos EUA e do Brasil. Erros que, dada a dimensão dessas duas federações, têm repercussão global. O poder que foi transferido para Trump e Bolsonaro pelos respectivos povos parece ter aumentado o atrevimento da sua ignorância. Nenhum deles sofreu a metamorfose que ocorre nos raros políticos que se transformam em estadistas.

Os incêndios imensos que lavram no Brasil (numa área maior do que a União Europeia), queimando imensidões de floresta tropical e de cerrado, revelam que o programa de Bolsonaro consiste em destruir tudo o que foi sendo construído para organizar a Amazónia legal, desde os tempos de Getúlio Vargas. O aumento exponencial dos incêndios reflecte no terreno a consequência das suas palavras de ódio contra todos aqueles que querem preservar a floresta e respeitar os povos indígenas. Bolsonaro e os seus cúmplices, como o “ministro do ambiente” Ricardo Salles, estão a instigar todos aqueles que se querem apoderar, mesmo ilegalmente, do território da Amazónia para fazer pastagens, garimpo ilegal e corte predatório de madeira. A partir de Brasília, atacam-se as agências federais que têm ajudado a manter a lei e a ordem: o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais); o IBAMA (principal agência ambiental); a FUNAI (a fundação destinada a proteger as populações indígenas). Sem vergonha, Brasília insulta a Alemanha e a Noruega que desde 2008 têm feito grandes doações para o Fundo Amazónia e diaboliza as ONG como se fossem malfeitores.

Tudo isto parece ainda mais trágico, quando o principal homem de acção e intelecto, que inspirou D. Pedro I nos primeiros anos de soberania do Brasil foi o genial José Bonifácio (1763-1838), que os brasileiros reconhecem como o “Patriarca da Independência”. Bonifácio foi um dos maiores naturalistas da época e pioneiro mundial da ecologia, tendo criado, tanto em Portugal como no Brasil, visionária legislação para a protecção das florestas. Em 1823, numa intervenção contra a escravatura, apresentada na Assembleia Geral Constituinte do Império, Bonifácio, proferiu este extraordinário alerta: “ (…) nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente. E com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos.” O povo brasileiro terá de escolher entre honrar o patriarca que sonhou o Brasil, ou vergar-se ao incendiário que o está a mergulhar num pesadelo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, na edição de 24 de Agosto de 2019, , p.25.

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