Quase duas gerações depois do fim da guerra-fria, eis-nos de regresso a uma escalada bélica que tem como limite a sombria possibilidade de uma hecatombe nuclear. Num artigo recente no Financial Times, John Tornhill analisava o debate que está a ser travado nos EUA para dar mais tempo aos decisores que sejam confrontados com um aviso, eventualmente falso, de ataque com mísseis balísticos, de modo a evitar o risco de uma guerra por acidente. Tornhill recordou, a propósito, a decisão do tenente-coronel soviético Stanislav Petrov (1939-2017), que em 26 de setembro de 1983 terá evitado a morte violenta de centenas de milhões de pessoas.
Em 1983 as tensões entre o Ocidente, liderado pelos EUA do vigoroso Reagan, e a URSS do debilitado Yuri Andropov estavam num pico de tensão alarmante. Como se não bastasse a corrida aos armamentos na Europa – a chamada crise dos euromísseis – a 1 de setembro o voo 007 das Korean Air Lines, depois de ter violado o espaço aéreo soviético, acabou por ser abatido pela aviação de Moscovo. Os erros de navegação do avião civil e a precipitação do piloto do SU-15 transformaram um incidente menor numa tragédia em que pereceram 269 pessoas. É neste enquadramento explosivo que Stanislav Petrov é chamado a substituir um camarada doente no comando de um centro de alerta precoce da Força Aérea soviética, que havia sofrido uma recente modernização informática. O que sucedeu depois pode ser visto com pormenor num documentário disponível no Youtube – The Man Who Saved the World – realizado em 2013 pelo cineasta dinamarquês Peter Anthony, sobre a vida e personalidade de Petrov. No painel de controlo, Petrov recebe a informação, veiculada por um sistema de satélites geoestacionários soviéticos, de que um míssil balístico norte-americano se dirigia para a URSS. Resolve ignorar o aviso, atribuindo-o a um erro do novo sistema. O problema é que, nos minutos seguintes, o painel indicou mais 5 mísseis norte-americanos em rumo para alvos soviéticos. Petrov depara-se com um dilema dilacerante. Se respeitasse o protocolo em vigor, tanto nos EUA como na URSS, ele deveria informar os superiores, para que estes iniciassem um contra-ataque nuclear ainda antes dos mísseis inimigos atingirem os seus alvos (launch-on-warning). Essa informação, de veracidade duvidosa, poderia desencadear uma catástrofe sem paralelo. Por outro lado, a sua formação militar inclinava-o a considerar que um ataque nuclear inicial (first strike) seria absurdo se efetuado por um número tão limitado de mísseis. Por isso, apesar da imensa pressão para dar o alerta, Petrov resolveu aguardar pela confirmação por radar, mesmo perdendo nessa espera a janela temporal para a resposta rápida. A coragem de colocar a sua avaliação racional à frente de uma disciplina protocolar, terá, com alta probabilidade, evitado uma guerra planetária por acidente. Petrov não foi, contudo, acarinhado no seu país. A sua notável decisão, divulgada muitos anos depois, foi reconhecida pelo meio cultural dos EUA, que o acolheu calorosamente em duas visitas. Vale a pena ver o filme de Peter Anthony sobre um homem que, nas suas palavras, se limitou a estar “no sítio certo, na hora certa”. Felizmente para todos nós. Agora que (quase) todos nos sentimentos impotentes perante a enormidade de eventos que nos ultrapassam, a lição de Petrov deveria incitar-nos a nunca desistir do papel, mesmo modesto, que cada um pode desempenhar para contrariar a corrida para o abismo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 28 de janeiro de 2023, página 9.