O FUTURO SEGUNDO MARIA DE LOURDES PINTASILGO

O Museu da Presidência da República (MPR) tem aberta ao público, até 31 de agosto, uma notável Exposição dedicada à figura singularíssima daquela que foi a primeira mulher portuguesa pioneira em várias funções, nomeadamente a de primeiro-ministro: Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo. Para a levar a cabo, e sob coordenação da sua diretora, Maria Antónia Pinto de Matos, o MPR recorreu ao concurso de várias entidades da esfera social e académica, reunindo também os contributos de várias dezenas de ensaios e testemunhos, onde se incluem textos do próprio presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de António Ramalho Eanes e de António Guterres. Um extenso e muito bem concebido Catálogo permite guardar, não apenas na memória, o espólio exposto.

Nos doze anos que medeiam entre o 25 de Abril e a entrada na CEE, o país oscilou numa arriscada situação de impasse entre vários caminhos possíveis, à semelhança do que tinha ocorrido na década após a independência do Brasil, quando Almeida Garrett publicou o livro Portugal na Balança da Europa (1830). Ao contrário das dúvidas alimentadas pelos nossos intelectuais e políticos no século XIX, depois de abril de 74, a Europa comunitária aparecia como um cada vez mais consensual e inevitável destino nacional. Lembro-me de várias vezes ter lido textos de MLP criticando a orientação cada vez mais mercantilista e financeira do rumo europeu, em detrimento das vertentes social e cívico-política que estiveram na raiz do empenhamento de tantos dos militantes da Europa nas ruínas de 1945. MLP correspondia bem ao lema da filosofia de Ernst Bloch (1885-1977) para quem a consciência humana, por ser “uma consciência antecipativa”, está sempre projetada para o devir.

O futuro para MLP nada tem da certeza do positivismo ou do marxismo vulgar, para quem o tempo da história constitui um espaço linear, plenamente, cartografado. Pelo contrário, o seu conceito de futuro é dominado pelo mistério do possível, mas também pela luta e trabalho concertados que à realização da sua ideia podem conduzir. Nessa medida, o futuro era uma abertura para a liberdade da ação democrática e coletiva, um acontecimento de esperança a resgatar a linha entrópica do tempo. Aquilo que mais validou esta política de acento profético e utópico, mas com pés no chão e na memória, foi a autenticidade da conversão religiosa da jovem MLP. Em julho de 2004, no mês da sua morte súbita, Anabela Mota Ribeiro publicou no DNA, então suplemento do Diário de Notícias, uma longa conversa ocorrida em Serralves, em dezembro de 2003, onde MLP se revela com um brilho intelectual e ético notáveis. Nascida de uma família fortemente laica, com traços do anticlericalismo da I República, MLP fez um caminho de conversão pessoal. Percebemos que o Deus de MLP era invisível, evocando o “Deus escondido” de Nicolau de Cusa. A religião não era propriamente uma Revelação tranquilizadora, mas antes um imperativo de ação em conformidade com valores de justiça e fraternidade. Sobretudo, uma aposta numa luta pelo melhor, por aquilo que nos impele a irmos para além de nós próprios. E isso conduz a uma noção alargada de pertença que vai para além do eu fechado no simples presente:” por mim, tenho a noção de que aquilo de que faço parte é uma coisa que há de vir, e que esse há de vir é para mim suficiente.” Que contraste com o horizonte de cinza, as palavras de chumbo e o futuro como certeza de catástrofe em que hoje habitamos…

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 11 de junho de 2022

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