Não sabemos o que é a verdade, pois a sua extensão transcende infinitamente a medida do nosso saber, sempre frágil, incompleto, provisório. A mentira, pelo contrário, dá-se a conhecer pela sua perna curta e consequências catastróficas. A grande mentira dos dias que correm é a de que a União Europeia está a viver o seu momento de maior unidade e coesão interna. Nos livros que em 2014 e 2019 dediquei a estudar o federalismo falhado da União Europeia, procurei desmontar o mito de que a UE ao criar uma moeda comum teria embarcado numa aventura federal. Julgo ter demonstrado, que, com a criação da zona euro, e as linhas vermelhas impostas pela Alemanha para bloquear uma política orçamental, fiscal e económica comum, a Europa transformou-se numa união monetária absolutamente assimétrica, um verdadeiro paraíso dos neoliberais, uma máquina de fabricar desigualdade entre países e classes sociais. Os anos de austeridade da crise do euro (disfarçada no rótulo malicioso de “crise das dívidas soberanas”) provaram que a Alemanha continuou a ser o instrumento de todas as forças que se opõem ao federalismo. Mesmo a crise pandémica foi mais uma ocasião perdida. Não se mudaram nem regras nem princípios. Apenas mais cola e adesivos para prolongar a ilusão de que é possível impedir que as forças centrífugas acabem por fazer cair, implodir, ou melhor, revelar a ilusão da unidade europeia.
A queda que se aproxima
A hora da mentira deixar cair a sua máscara aproxima-se. Sob uma liderança alemã incontestável (com Macron, a França não conta), o chanceler alemão, o senhor Scholz, e a presidente da Comissão Europeia, a senhora von der Leyen, apunhalaram a Europa. Depois de longos anos de duplicidade alemã, beneficiando da energia russa barata, mas sendo cúmplice com a insensata política dos EUA de cerco estratégico à Rússia, em que nenhum país europeu está isento de responsabilidade, a “resposta europeia” à invasão russa da Ucrânia caracteriza-se pela sua extrema e absurda incompetência, implicando inevitáveis e suicidários resultados.
Tentemos fazer uma lista da situação complicada e retorcida para a qual fomos empurrados pelo ativismo obediente de Berlim/Bruxelas: 1) Ficámos atrelados incondicionalmente aos EUA numa guerra envolvendo as maiores potências atómicas do planeta, limitando-nos a ser os peões do Tio Sam. 2) Na prática, apoiamos a intenção de os EUA de transformar a OTAN na sua Liga do Peloponeso global, visando atingir a China através da hemorragia da Rússia. 3) A passividade europeia, coloca-nos a todos como potencial alvo, caso a escalada bélica alimentada por Washington com o nosso consentimento, leve ao uso de armas atómicas. 4) As estúpidas sanções energéticas à Rússia (há uma imbecilidade teutónica que se repete ao longo da história…) mostram a pulsão suicida de quem nos governa, pois demos a Putin a capacidade de atirar a UE para uma recessão se nos fizer a vontade mais cedo… cortando já o gás natural. 5) Outra consequência das sanções foi o golpe mortal infligido ao Pacto Ecológico, transformando a luta contra as alterações climáticas numa mentira a juntar às outras. 6) A próxima recessão fará a crise do euro de 2010-2015 parecer um passeio primaveril, produzindo um empobrecimento generalizado, levando a política para as ruas através de uma agitação social, como já ocorre na Holanda, França e Itália, que acabará por fazer cair governos…7) A desvalorização brutal do euro face ao dólar, corresponde a uma perda instantânea de riqueza para as famílias e a uma carestia exponencial do preço das importações de matérias-primas de que a economia europeia carece estruturalmente, conduzindo, por exemplo e pela primeira vez em 30 anos, a um défice comercial alemão… 8) Se este caminho não for invertido, no próximo inverno, juntaremos o frio à inflação descontrolada dos produtos essenciais, à taxa de juro alta para pagar o serviço da dívida pública ou os empréstimos das famílias e empresas, à paralisia das empresas e aumento de desemprego, à crescente violência social das vítimas mais imediatas da degradação económica, à impotência do BCE para remediar o irremediável, num quadro de continuação de uma guerra que só serve para alimentar as redes de poder organizadas em torno das indústrias bélicas e de combustíveis fósseis… Alguém acredita que o senhor Scholz e a senhora von der Leyen serão capazes de uma liderança inteligente capaz de impedir a desordem de desaguar no caos?
Não perder de vista um federalismo improvável
Há momentos na história humana em que a razão se transforma num frágil foco de luz, tremulando sob o peso de espessas sombras que o ameaçam obscurecer. No entanto, mais tarde ou mais cedo, não existirá alternativa ao autêntico federalismo, caso a Europa não pretenda apodrecer no caos político, na desordem económica e na miséria social, arrastando consigo o resto do mundo, ou sendo por este arrastada.
No seu livro fundamental, Assim Falava Zaratustra, Friedrich Nietzsche fazia uma distinção entre a antiga nobreza e a nova nobreza, de que a Europa e o mundo, segundo ele, tanto careciam. A antiga nobreza era anunciada pela partícula “de” (von), que sempre precede o nome das velhas famílias aristocráticas alemãs. A “nova nobreza” (der neue Adel), designada também por Nietzsche como os “semeadores do futuro” (Sämänner der Zukunft) seria definida já não por um “de onde” (woher), designando uma origem de sangue e linhagem herdada passivamente pelo nascimento, mas por um “para onde” (wohin), indicando a deliberada aposta num rumo feito em conjunto. Mesmo que a Europa como projeto político não sobreviva à sua transformação em mero instrumento servil de uma desesperada estratégia de dominação global da plutocracia em que degenerou o federalismo norte-americano, cada um de nós tem de saber em que lado da tragédia europeia se pretende situar. Continuo a sustentar que o federalismo de legítima defesa constitui uma via incomparavelmente preferível ao desastrado regresso a uma escala de fragmentação nacional, ou até subnacional. O facto de o desastre ser mais provável do que a esperança constitui uma razão suplementar para não desistirmos da luta para merecer um futuro habitável.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no JL, edição de 27 de julho de 2022, página 28.