A narrativa de uma cisão do mundo entre democracias e autocracias não é apenas simplificadora. Trata-se de uma crença ideológica, pior do que um erro, pois não é suscetível de correção. Tende a enfraquecer nos cidadãos uma das condições vitais para a sobrevivência das democracias: o exercício de uma constante vigilância crítica. Esta semana trouxe-nos dois acontecimentos que demonstram a validade do título deste artigo. Analisemos, então, o significado de mais um massacre de crianças e professores, numa escola norte-americana, em Uvalde, no Texas. Meditemos também no indicador de fragilidades das democracias, latente em mais uma reunião do Fórum de Davos.
Depois de mais um massacre de 19 crianças e 2 professoras, às mãos de um jovem de 18 anos, com um registo negligenciado de perturbação mental, o Presidente Biden, num misto de impotência e denúncia, interrogou-se sobre as razões do contínuo bloqueio do lobby das armas a qualquer legislação limitadora do uso civil de armas. Do ponto de vista constitucional, o segundo aditamento à Constituição federal, que entrou em vigor no distante 15 de dezembro de 1791, proíbe o governo federal de limitar o porte de armas aos cidadãos. Nessa altura, o que estava em causa, num país saído da guerra da independência, fazendo fronteira com colónias espanholas, francesas e inglesas, além de nações índias potencialmente hostis, era preservar a capacidade de os estados federados manterem a capacidade de mobilizar milícias em caso de necessidade. O problema, hoje, reside em perceber os motivos que levam o Congresso federal a tratar o assunto da liberalização das armas como uma espécie de dogma sagrado. A resposta encontra-se na desmesurada e ameaçadora fação dos produtores e negociantes de armas, organizados na National Rifle Association. Sem pudor, a NRF estende uma rede de dólares e benesses sobre os representantes e senadores que a servem. Usando demagogicamente a fidelidade à liberdade dos Pais Fundadores, influenciam e ameaçam através dos meios de comunicação social e das redes sociais. A democracia nos EUA permitiu alargar o mercado de armas de guerra aos civis, sendo mais fácil hoje a um jovem de 18 anos comprar uma metralhadora do que uma garrafa de cerveja. Esta situação, que reflete em espelho doméstico o modo como o “complexo militar industrial” (na expressão cunhada pelo presidente Eisenhower) condiciona a política externa e de defesa dos EUA, manifesta o lento, mas inexorável processo de transformação da democracia norte-americana num sistema plutocrático de governo. Por seu lado, a reunião de Davos, realizada anualmente desde a sua fundação por Klaus Schwab em 1971 – a que poderemos juntar as reuniões, ainda mais seletivas, do grupo de Bildeberg, criadas em 1954 por iniciativa do príncipe Bernhard dos Países Baixos –, exibe a patológica clivagem entre uma democracia desprovida de poder, e o poder bruto da riqueza que manda sem prestar contas a ninguém. São os pontos de encontro da pequena elite mundial de bilionários, com a sua corte de serviçais, clientes, e críticos de estimação. Uma elite capaz de comprar a agenda de países inteiros, controlando de modo decisivo, por exemplo, o curso da inovação tecnológica em função dos seus exclusivos interesses. O heroísmo de todos aqueles que ao longo de milénios morreram pela democracia, merece que usemos comedidamente o seu nome, neste tempo em que o mal parece destinado a prevalecer sobre o bem e a justiça.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 28 de Maio de 2022, p. 10.