NO IMPÉRIO DAS “PAIXÕES TRISTES”

O vandalismo nas noites de Barcelona, onde não faltaram grupos de adolescentes saqueando lojas, numa réplica da explosão de banditismo que sacudiu Londres em 2011, constitui uma imagem do abismo em que mergulhou o nacionalismo catalão. A acção de sectores independentistas violentos revela a desorientação reinante. É a fúria que procura consolar a derrota. Contudo, não só os independentistas perderam, como perdeu a Espanha democrática pós-franquista. Perdeu a própria UE, cada vez mais incapaz de unir os cidadãos europeus para as lutas que só juntos poderiam vencer.

O novo projecto nacionalista catalão foi catalisado em 2006 pela objecção judicial parcial ao Estatuto da Autonomia catalã, contudo, só ganharia maior expressão depois de 2011. A intransigência do governo de Rajoy, barrando o indispensável diálogo entre Madrid e Barcelona, já foi aqui, por mim, amplamente criticada. Menos conhecido é o facto da componente europeia da estratégia independentista liderada por Artur Mas ter consistido em cortejar oportunisticamente a política de austeridade imposta pela Alemanha, baseada na fábula da cigarra do Sul e da formiga do Norte, procurando evitar a necessária reforma da incompleta e disfuncional zona euro. A tentativa de vassalagem a Berlim – a que esta com sabedoria jamais sucumbiu – foi assumida sem pudor. Em Novembro de 2011, Artur Mas, no encerramento da VI Convenção de Comércio da Catalunha, afirmava: “Os alemães querem mandar na Europa, porque são os que pagam, eu digo com ironia que os catalães se parecem com os alemães, porque aqui [em Espanha] pagamos, mas não mandamos.” A defesa pela Generalitat da austeridade incondicional na crise do euro, para se colocar sob a protecção do directório, revela que para os independentistas radicais a UE é sobretudo um instrumento descartável, ao serviço da sua paixão identitária.

A liderança catalã, incluindo esse hologramático Puidgemont, descontou o risco que corria ao colocar, na fuga para a frente de 2017, a hubris independentista acima da ideia de uma refundação federal do Estado espanhol. O que sobra quando a imaginação se quebra na parede da realidade é uma Catalunha dividida ao meio, a crispação de uma sociedade culturalmente vibrante, a substituição da prosperidade pelo empobrecimento, do cosmopolitismo pelo ressentimento. O futuro não promete independência, mas mais entropia na já ferida autonomia catalã. O assunto não comove no exterior, numa altura em que o mundo se dilacera, em formação dispersa, sem liderança nem rumo. No topo da agenda política e económica local, nacional e global deveria estar a necessidade de cooperação compulsória para enfrentar a emergência climática e ambiental, que vai minando as condições biofísicas de que depende o nosso futuro. A virulência de todos os nacionalistas é uma das “paixões tristes” que dilacera os homens, dentro de si e entre si, como escreveu Espinosa. Sempre os afastou da liberdade. Em 2019, torna mais improvável também a nossa própria sobrevivência colectiva num horizonte de escassas décadas.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 26 de Outubro de 2019, p. 29

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