NEM NA TERRA NEM NO MAR

No dia 15 de Outubro, a Antena 1 fez uma ampla cobertura evocativa da hecatombe incendiária (de uma brutalidade inédita à escala não apenas nacional, mas planetária!) de 2017. As pessoas entrevistadas falavam como quem tivesse passado por uma guerra. Um produtor florestal lamentava o modo espontâneo como o eucalipto está a rebentar no meio dos campos ainda carbonizados. Com razão, o então Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) tentou classificar em 2009 o eucalipto como “espécie invasora”, até que o governo de José Sócrates mandou suspender o processo (não precisamos de perder muito tempo a perceber porquê…). Hoje, 10% do território nacional está ao serviço do império das celuloses. Para arrancar os eucaliptos seria preciso um investimento brutal. Infelizmente, só uma improvável determinação política evitaria um futuro em que os eucaliptos vão ganhar a guerra contra o bem público. Com intervalos e pausas continuaremos a ter maiores incêndios. Mais interesses instalados tanto para a pasta de papel como para a indústria de combate aos incêndios. Teremos menos populações no “interior”, mais despovoamento e mais desertificação.

Se avançarmos para o litoral a situação não é diferente. Para além do furo de Aljezur, que procura fazer Portugal entrar no ovil dos produtores de petróleo (como se não bastasse a corrupção já instalada, ainda se quer acrescentar aquela que, com excepção da Noruega, caracteriza todos os países onde o crude jorra), vão ter início agora as mega-dragagens do porto de Setúbal. Numa altura em que já temos um gigantesco e adequado porto de águas profundas em Sines, e terminais de contentores em Lisboa e Barreiro (este ainda a construir), eis que o porto de Setúbal vai remover 6,5 milhões de m3 de areias e gastar 24,5 milhões de euros (14, 8 de fundos comunitários) para permitir que os canais da foz do Sado acomodem a entrada de navios porta-contentores de uma dimensão já considerável. As obrigações legais de avaliação de impacte ambiental foram cumpridas, com o sigilo habitual para não causar alarmes inconvenientes. A decisão, com a cumplicidade já habitual da Agência Portuguesa do Ambiente, acabou por privilegiar uma visão económica de curtas vistas e tecnicamente cheia de erros. Por incrível que possa parecer, será durante as obras de dragagem que será realizado um estudo sobre a dinâmica sedimentar do estuário, que deveria ter antecedido em muito esta intervenção brutal e maciça! Por outro lado, o estudo não incluiu as alterações climáticas na sua avaliação, quando elas sim, vão obrigar – mais brevemente do que se julga – os portos nacionais a obras vultuosas para acomodar a subida inevitável do nível médio do mar (NMM). As obras, que merecem agora fortes protestos dos empresários turísticos e das organizações de pescadores artesanais, que sustentam centenas de famílias, não contabilizaram os danos resultantes da diminuição da produtividade biológica do estuário, que é uma reserva natural também por isso mesmo e não só pelas aves aquáticas, nem descontaram as perdas de postos de trabalho no sector turístico resultantes, não só do aumento futuro da circulação de navios comerciais no estuário, como das consequências prejudiciais sobre a comunidade de golfinhos do Sado (em Aberdeen, na Escócia, uma comunidade semelhante sofreu impactos negativos, devido a dragagens, mas em Setúbal ninguém quis aprender a lição).

O mais incrível na minha perspectiva foi a reacção do município de Setúbal. Ao longo dos últimos quinze anos, a actual presidente da edilidade sadina, tem apoiado, e bem, a criação da Marca Setúbal como destino turístico baseado em valores ambientais e culturais. O Sado tem a dupla marca da Natureza e da História. Setúbal foi acolhida no prestigiado Clube das Mais Belas Baías do Mundo. A cidade investiu na sua reabilitação. Os equipamentos públicos embelezaram-se. Perante as obras, a CMS limitou-se a aplaudir. Sem um protesto nem uma exigência de rigor. Será que os interesses dos mais de cem mil habitantes de Setúbal servem como moeda de troca nas negociações da “geringonça”?

Na verdade, depois da miséria de 4 anos de troika, austeridade, e delapidação da propriedade nacional com governos PSD-CDS, esta governação do PS, com aliados à esquerda (BE e PCP), tem sido uma calamidade ambiental. É prematuro exultarmos por não termos ainda nenhum partido populista. Para danificar e empobrecer Portugal não são precisos bárbaros a ulular fora das muralhas. Bastam-nos os partidos do arco constitucional alargado. Aqueles que nos aparecem nos boletins de votos em todas as eleições.

 

Viriato Soromenho-Marques

Publicado originalmente no Jornal de Letras de 24 de Outubro de 2018, p. 31.

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Vasco Tomás

Ainda bem que há neste pais alguem com saber, experiência e arrojo que chama os bois pelo seu nome. A opiniao do senhor professor Viriato Soromenho-Marques, como é seu timbre, revela conhecimento de causa e tem uma argumentaçao persuasiva. Era bom ser tema de um debate, onde Governo e autarquia, para além de técnicos na área do impacto ambiental tomassem posição. Um assunto desta natureza não pode ser apenas um artigo perdido numa página de um jornal (o JL), ou nesta página do autor. Porque o tema tem dimensao nacional, e até planetária.
Oxalá alguém da comunicação social se lembre de trazer à opinião pública temas como este da dragagem do Estuario dp Sado, onde inevitacelmente o que esta em causa é a equaçao entre um determinado tipo de desenvovimento económico e a preservação dos equilíbrios da natureza.

Obrigado, Professor pela chamada de atençao para este problema!