A política é a arte da sobrevivência coletiva, e a forma superlativa dessa arte é a política externa, pois o direito internacional público, como direito imperfeito que é (a violação da norma raramente é acompanhada de sanção efetiva), acaba por ser muitas vezes uma mera lamentação perante o direito do mais forte. Na hora da verdade, a política internacional é, tecnicamente, uma modalidade de “estado de natureza”. As grandes potências sabem-no bem, e nunca faltaram desculpas para rasgar tratados quando o interesse próprio esteve em jogo. Muitos dos que hoje, com absoluto rigor jurídico, acusam a Rússia de violar as fronteiras de um país soberano, tendem a usar uma balança diferente para classificar a invasão do Iraque, há quase 20 anos, por uma coligação liderada pelos EUA, sem suporte da ONU, tendo por pretexto uma grosseira mentira.
Se não é fácil ser uma grande potência, ainda mais difícil é sobreviver quando se trata de médios e pequenos Estados. O estatuto de Portugal é de uma singularidade híbrida. Durante mais de meio milénio vivemos na dialética entre o retângulo europeu e um império ultramarino. Em 1640 e 1807 o Brasil foi essencial para a nossa sobrevivência e independência. Contudo, como ensinou Adriano Moreira (AM), o país sempre precisou de um apoio externo, para proteger a nossa geografia binária perante os potenciais inimigos. Em 1952, 3 anos após a criação da OTAN, de que o país foi um dos 12 Estados fundadores, o coronel Pereira da Conceição explicou a necessidade de um aliado forte de modo cristalino: “Portugal só pode continuar [como potência ultramarina], se se puder apoiar na potência do mar que tenha o domínio do mesmo (…) quer ela ontem se chamasse Inglaterra, hoje se chame Estados Unidos ou amanhã se chame Japão.”. Consequentemente, a maior tensão entre Lisboa e Washington não ocorreu durante o PREC de 1975, mas em 1961, quando o início da guerrilha armada em Angola colocou as políticas africanas dos dois países, temporariamente, em choque frontal.
A nossa democracia foi fundada na rutura com a cultura de dominação, inerente aos impérios coloniais, mas também no pressuposto de que o capital positivo da história e da cultura deveria ser o chão sólido para uma fértil cooperação, também económica e estratégica, com as nações que hoje falam a língua portuguesa que todos partilhamos, com destaque para o Brasil, Angola e Moçambique. Isso garantiria “janelas de liberdade”, cito de novo AM, complementares à integração europeia e às boas relações com Washington. Habitar a nova “balança da Europa” não tem sido fácil. Maurice Duverger terá dito que através da via europeia, Portugal parecia querer aposentar-se da história. Em vez disso, como bem afirmou Félix Ribeiro nos anos da troika, a UE assemelhou-se antes a uma instituição correcional. Por outro lado, a OTAN alargou-se nos membros e na geografia da sua intervenção. O seu ativismo, que a levou às fronteiras da Rússia, contrasta com a inicial natureza defensiva. Estamos agora embarcados numa hostilidade crescente com Moscovo. Dois objetivos deveriam orientar a conduta de Lisboa. Primeiro, abster-se de aumentar a febre bélica, pois em caso de conflito generalizado poderemos ser um alvo no âmbito de uma escalada nuclear. Segundo, impedir que num cenário de nova guerra fria, fiquemos em campos opostos em relação aos países da CPLP. O atrapalhado convite ao Presidente do Brasil mostra como até isso está longe se poder considerar como garantido.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 4 de março 2023, p. 9