Em março de 1942, numa fase ainda indecisa da II GM, a publicação de um cartoon no Daily Mirror, crítico da condução da guerra pelo governo de Londres, suscitou uma forte advertência do gabinete de Churchill, com acusações de “derrotismo” (defeatism). O que poderia ter sido um caso infeliz, acabou por suscitar um amplo debate revelador da força do espírito de liberdade na cultura política britânica, tendo-se notabilizado na defesa do Daily Mirror, o jovem editor do jornal rival, The Evening Standard, Michael Foot (1913-2010), ainda com uma longa vida pela frente como intelectual e dirigente do Partido Trabalhista britânico. Nas notícias sobre a guerra russo-ucraniana os governos ocidentais já não precisam de intervir. O modelo de concentração da propriedade dos media hoje nada tem que ver com a fragmentação significativa que ainda caracterizou grande parte do século XX. As notícias de guerra obedecem a uma dinâmica de normalização do discurso em matéria de geopolítica e política internacional, que tem merecido estudos vários acerca do modo de formação de narrativas hegemónicas sobre conflitos internacionais. Nesta guerra, é clara a predominância de uma linha de abordagem articulada pelas duas premissas mais exaustivamente repetidas: a) esta guerra envolve um agressor e um agredido; b) a invasão russa não foi provocada (unprovoked), como repete muitas vezes o Presidente Biden. A primeira premissa é factual, contudo, combinada com a segunda constitui-se como um instrumento de dissuasão do pensamento crítico, o que explica a presença de um elevado grau de conformismo perante interpretações da origem do conflito e a condução da guerra, que, em vez de analisadas e debatidas, são dadas como intuitivamente indiscutíveis.
O que me preocupa é o processo de degradação de um dos valores fundamentais da tradição ocidental, precisamente por parte daqueles que gritam a sua fé na democracia. Esse valor é aquilo a que Hannah Arendt chamava de “imparcialidade homérica”, consistindo na capacidade de considerar os diferentes pontos de vista, as diferentes perspetivas pelos intervenientes numa situação extrema. Quando estamos a falar numa guerra em que a possibilidade de derrapagem nuclear é elevada, essa capacidade de pensar no lugar dos outros pode ser a diferença entre a salvação ou a catástrofe descontrolada, a que a escalada do ódio acabará por conduzir. Arendt chamava a atenção para a raridade que encontramos na Ilíada, obra fundacional da cosmovisão ocidental. Nenhuma outra cultura anterior, ao representar uma guerra entre o seu povo e um povo inimigo, foi capaz de mostrar tamanha isenção. Homero eleva à categoria de herói, não apenas o campeão dos gregos, Aquiles, mas também o malogrado príncipe troiano, Heitor. Esta guerra, como tudo o que existe, tem causas. O longo processo de unilateralismo nas relações dos EUA e da Rússia está profusamente documentado na literatura académica norte-americana. A agressão russa, inaceitável no plano do direito internacional, não permite, contudo, diabolizar a Rússia como única responsável política por esta guerra, nem apagar as responsabilidades, por atos e omissões, do Ocidente. Este massacre em crescendo poderia ter sido evitado, se a diplomacia, a capacidade de escuta e compromisso, tivesse tido a última palavra. A sabedoria homérica revela a unidade da condição humana, esse frágil tesouro de universalismo e compaixão, talvez a última defesa contra a eclosão do inferno na Terra.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 10 de junho 2023, p. 13.