NACIONALISTAS, INSTALADOS E DESCAMISADOS

Os violentos acontecimentos em França e a ascensão da extrema-direita na Andaluzia conferem renovada actualidade a este texto que publiquei em Setembro, com outro título.

Depois da guerra franco-prussiana (1870-1871), dois europeus anteciparam o futuro catastrófico do Velho Continente. Ainda em 1870, o nosso João de Andrade Corvo profetizava que os nacionalismos invocando “argumentos” raciais estavam condenados a mergulhar a Europa numa desordem sangrenta que acabaria por levar os EUA a intervirem militarmente para restaurar a paz. Também Nietzsche – um defensor de um “homem europeu”, resultado de uma mestiçagem cultural profunda – temia que a sua ideia de uma Europa unida, onde os Estados se tornassem numa espécie de grandes e pacíficos cantões suíços, acabasse por ser vencida pela repetição da maldição que levara os gregos da Antiguidade, no auge do seu poder e da sua cultura, a devorarem-se sem dó nem piedade nas guerras do Peloponeso. O último discurso sobre o Estado da União do presidente Juncker ecoa a presença inquietante desse gene da discórdia helénica no ADN europeu. Juncker, como é seu costume, apresentou as premissas correctas, mas sem daí extrair a conclusão lógica que lhe é inerente. Lamentou a deriva britânica, por sinal o país que mais instabilizou a vizinhança próxima da UE com o seu belicismo no Iraque, na Líbia e na Síria. Aludiu à expansão de um nacionalismo agressivo, que, de acordo com um estudo de política comparada recente (projecto V-Dem) já afastou 4 países da União do clube das democracias liberais (Hungria, Polónia, Lituânia e Eslováquia), sem falar na Roménia e em Malta. Referiu a necessidade de a UE ter capacidade própria e coordenação na área da defesa, como se esse não tivesse sido um desígnio original, patente no ambicioso projecto da Comunidade Europeia de Defesa (1952), logo esmagado pelo nacionalismo gaulês em 1954. Evocou a urgência de uma parceria com África, o continente que mais sofreu pela proximidade da implacável voracidade colonial e neocolonial europeia, como se esse não tivesse sido um objectivo tantas vezes invocado por Robert Schuman na década de 1950. Apelou, ainda, a que a União se concentrasse nos objectivos comuns do combate contra a ameaça ontológica das alterações climáticas.

Juncker fez o mais fácil. Apontou o dedo aos nacionalistas descamisados, que o medo, a fraude, mas também a ambição pessoal e o preconceito estão a colocar nos parlamentos de quase toda a União. Faltou a Juncker olhar-se ao espelho. Nomear os nacionalistas instalados, que tudo têm feito para manter a UE desprovida de um governo comum com meios para defender esse interesse colectivo, invisível para quem espreita das capitais nacionais. Os nacionalistas instalados aprovaram o Tratado de Lisboa, que acentua a tónica intergovernamental sobre a comunitária, diminuindo os poderes do presidente da Comissão (como o próprio Juncker já o reconheceu), face ao presidente do Conselho Europeu; perpetuaram um mísero orçamento comunitário de 1% do PIB, que reduz as políticas europeias a espuma retórica. Quando a crise financeira se transformou em crise da dívida, os nacionalistas instalados defenderam os seus bancos e paraísos ficais impondo uma austeridade generalizada aos povos europeus através do tratado orçamental, que foi muito para além dos países intervencionados pela “troika”. O problema é que enquanto o nacionalismo instalado não for denunciado como aquilo que é, um obstáculo estrutural da unidade europeia, os nacionalistas descamisados continuarão a surgir como aqueles que propõem a mudança. Mesmo que ela seja a de dar o passo que falta na direcção do abismo.

 

Viriato Soromenho-Marques

 

Artigo publicado pela primeira vez no Diário de Notícias, em 16 de Setembro de 2018, com o título de “A Síndrome do Peloponeso”

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