Dentro da tempestade é difícil perceber os limites do que pode ser dito e escrito, sem cair na fífia ou no disparate. Há contudo, um tema absolutamente incontornável, que esteve sempre latente e agora ganha uma evidência ensurdecedora: o que vai acontecer a essa instituição a quem todos agora suplicam? Qual vai ser o futuro do Estado, ao seio do qual todos agora se acolhem, das influentes multinacionais do sector automóvel ou da aviação civil aos humildes trabalhadores eventuais do turismo e da restauração? Importa recordar de onde viemos. Foi o Estado, esse “deus mortal”, na rigorosa expressão do genial Thomas Hobbes (1588-1679), que salvou a democracia representativa em que, apesar dos desvios demagógicos e plutocráticos, grande parte do Ocidente ainda vive O grande estadista do século XX foi o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt (FDR). Entre 1933 e a sua morte em 1945. FDR reconstruiu o federalismo norte-americano, através de leis e instituições que defendiam a sociedade contra o capital financeiro sem destruir a capacidade de iniciativa do mercado; no plano internacional não só liderou o combate vitorioso contra as potências do Eixo, do Atlântico ao Pacífico, como lançou as bases de um sistema internacional orientado pela procura da paz com ordem, que ainda sobrevive no que sobra das Nações Unidas. Se os EUA tivessem sido liderados pela America First de Charles Lindbergh, a Europa e a Ásia teriam caído no inferno do jugo totalitário, racista e militarista do Eixo.
Hoje o Estado ou é impotente (o que se passa hoje na zona euro é o preço que se paga por um federalismo mal-amanhado e “low-cost”), ou está a desmoronar-se (em matéria de saúde pública, os EUA são um Estado falhado). Há 45 anos que os poderes e as leis do “Estado social” têm sido enfraquecidos. O mercado, dominado e manipulado pela porosidade do capital financeiro, é quem controla hoje as políticas públicas. Todo o edifício que FDR deixou aos EUA e ao mundo, tem vindo a ser destruído. O que norteia as políticas hoje não é a segurança das pessoas, nem a procura da justiça, ou a garantia da paz, mas a idolatria cega do lucro pelo lucro, a mais vulgar expressão da vontade de poder. Por isso, a crise ambiental e climática tem aumentado sem cessar, tendo – no plano nacional – as leis ambientais e a protecção dos direitos sociais sido enfraquecidas, e completamente suprimidas no plano internacional para fazer rolar o comércio internacional. Porque o “show must go on”, os avisos sobre o risco de pandemia foram ignorados ao longo dos anos, e as medidas de combate foram atrasadas para além do razoável. Estamos a entrar, à escala global, no planalto de um “U” invertido. Esta pandemia marca o início declarado de uma longa queda. Bem precisaríamos de um Estado que nos defendesse, sem nos oprimir. Políticas comuns capazes de coordenar a luta contra a crise ambiental e climática, que seguirá o seu curso destruidor. Contudo, as nossas preces correm o risco de se dirigir a um deus que já morreu. Teremos nós engenho para o ressuscitar a tempo?
Viriato Soromenho-Marques
Publicado originalmente no Diário de Notícias ed. nº 55143 de 11 de Abril de 2020