NA HORA MAIS PERIGOSA

O mundo está cada vez mais sombrio. Uma guerra na Europa há mais de dois anos. Em Gaza, a banalização do genocídio. Netanyahu é hoje o mais poderoso e inimputável carniceiro do planeta. Ele exibe, com visível prazer, o total domínio sobre Biden, e o conformismo colaborante da UE, através da desastrada Ursula von der Leyen. Podem as coisas bater ainda mais no fundo? Sim. Numa dezena de dias, dois acontecimentos envolvendo Berlim e Paris – o duplo “motor da construção europeia”, como se dizia nos tempos de ilusão – concorreram para uma eventual escalada bélica.

Moscovo intercetou em 19 de fevereiro uma longa conversa envolvendo quatro oficiais de alta patente da Força Aérea alemã, onde se destaca o seu chefe máximo, o general Ingo Gerhartz. Esta gravação é politicamente significativa pelos seguintes motivos: revela que esses militares manifestam simpatia pelo aparente apoio do ministro alemão da defesa, Pistorius, à entrega a Kiev de mísseis Taurus de fabrico alemão, com alcance até 500 km; a posição prudente de Scholz (que receia um ataque a Moscovo com esses mísseis) é tratada como um obstáculo; para o caso da transferência dessas armas são estudados potenciais alvos, assim como formas de dissimular o envolvimento alemão; percebe-se que todos os participantes sabem terem os EUA, a França e a Grã-Bretanha militares na Ucrânia, envolvidos diretamente no uso do material de guerra mais moderno e complexo; um dos alvos potenciais discutidos é a ponte da Crimeia… O acesso a esta gravação deve-se a uma imperdoável falta de profissionalismo nos protocolos de segurança, que ajuda a perceber como a inépcia de militares, e não apenas a maciça ignorância dos políticos, nos conduziu até aqui.

O segundo caso é ainda mais grave. Em 26 de fevereiro, Macron lançou a ideia de que a OTAN deve ponderar a intervenção com forças terrestres no teatro de operações ucraniano. Vozes contrárias ergueram-se de Washington, Londres, Berlim. Roma e Madrid.  Dia 5 de março, um Macron ofendido reiterou a ideia, invocando a sua “coragem”, insinuando a cobardia alheia, incitando a OTAN a enfrentar Moscovo frontalmente. A fanfarronice de Macron não é sinal de coragem – que Aristóteles afirmava ser a suprema das virtudes, raiz de todas as outras -, mas de uma tóxica combinação entre temeridade, superficialidade e má-fé. Se a OTAN entrar em guerra direta com Moscovo é fácil prever o que vai acontecer: seguindo a sua doutrina militar de décadas, a Rússia compensará a sua inferioridade convencional, perante o conjunto da OTAN, com o uso do seu diversificado arsenal nuclear. A escalada começará nas armas táticas de teatro, com algumas quilotoneladas de TNT equivalente, e acabará nos SLBM, com várias megatoneladas, mísseis lançados de submarinos capazes de arrasar cidades inteiras. Só uma criminosa arrogância pode levar a acreditar que se trata de bluff.

Repito pela enésima vez: numa guerra entre potências nucleares, capazes de destruir várias vezes o planeta (overkill), só o primado racional da política e da diplomacia pode evitar o suicídio da humanidade. Se a OTAN – trocando uma agenda política realista por uma irresponsável retórica de ressentimento – enveredar pela confrontação militar direta, não terá como resposta o irrepetível milagre da santidade política de Gorbachev. Com Putin, quem quiser derrotar a Rússia terá de arriscar a destruição mútua assegurada. O irreversível fim da história como terminal e absoluta realidade.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, 9 de março 2004. página 9.

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