Na acção governativa emergem os sinais de arrogância e de expedita interpretação instrumental das leis. Como se ainda vivêssemos no tempo da maioria absoluta de um primeiro-ministro, que o PS apoiou entusiasticamente, e que hoje – acusado do maior e mais danoso escândalo político do último século – tem como único alibi perante a justiça provar que nunca foi capaz de viver sem o esbulho contumaz do pecúlio da família e amigos. Seria de esperar que o PS, por mera prudência estratégica, moderasse a sua acção, observando estritamente o normativo legal. Mas não. Mesmo sem maioria absoluta, multiplicam-se os casos de ataque ao interesse público e de enxovalho do direito e da ética pública republicana. As fontes de denúncia não têm vindo do parlamento, cuja incapacidade de vigiar os actos do governo é o maior aliado da abstenção, mas da comunicação social e de jornalistas corajosos. Sandra Felgueiras, mostrando que a RTP pode prestar verdadeiro serviço público, encostou o governo às cordas em dois negócios obscuros. Um de evidente ilegalidade – a atribuição a uma empresa da esfera da Mota-Engil de uma operação na área dos resíduos, avaliada em 70 milhões de euros, sem concurso público. Orlando Borges, o rosto da entidade reguladora do sector (ERSAR) criticou as pressões do governo, e um parecer da PGR bloqueou o negócio, como Pedro Santos Guerreiro explicou no seu mais recente artigo no Expresso. O segundo negócio de legalidade improvável envolve uma concessão de exploração de lítio em Trás-os-Montes, a uma empresa de credibilidade duvidosa. As esfarrapadas justificações de João Galamba aumentam as suspeitas, em vez de as dissiparem.
Nestes dias tenho-me lembrado da carta que Thomas Jefferson, então embaixador dos EUA na Paris de 1787, enviou ao seu correligionário Edward Carrington. Defendendo o papel fundamental da imprensa livre na informação dos cidadãos, e na denúncia dos abusos governamentais, escreveu: “se tivesse de decidir entre um governo sem jornais, ou jornais sem governo, eu não hesitaria em escolher a segunda opção”. Jefferson alerta também para o facto de o exercício do poder, sem oposição e vigilância crítica, acabar por transformar os governantes em lobos e os governados em cordeiros. Essa realidade era omnipresente na Europa de 1787, mas ele temia que, sem vigilância suficiente, os EUA tivessem o mesmo destino. Na verdade, muitos dos projectos-bandeira deste governo são actos de predação, lesando o suporte ecológico do futuro do país. As áreas protegidas são leiloadas pela melhor oferta, como se viu com o aumento da agricultura intensiva no Sudoeste Alentejano. As dragagens no estuário do Sado serão uma irracionalidade económica e ecológica (ver a excelente peça de Graça Henriques, DN, 09 11 2019). O novo aeroporto do Montijo, ignorando a RNET e o impacto das alterações climáticas, constitui outra ofensa ao interesse público. A tendência para o abuso é inerente à fragilidade moral da condição humana. Por isso, todo o cuidado é pouco perante governos com lobos, isto é, “humanos, demasiado humanos”.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 16 de Novembro de 2019, página 21.