Marcelo Rebelo de Sousa encontra-se, mais uma vez, onde sempre gostou de estar: no centro das atenções. Não pelo seu pensamento próprio sobre um assunto relevante, apesar de estes não escassearem, mas, simplesmente por ter transformado a sua própria pessoa no assunto mais incontornável que concita as palavras ditas e escritas por esse país fora. É impossível, quando se entra nesta arriscada aventura de tentar perceber o que motiva as ações do Presidente Marcelo, não cair num arriscado exercício de psicologia artesanal. Ficamos todos na posição de parceiros involuntários da terapia de grupo de Marcelo como pessoa singular. “Todo o homem é uma guerra civil”, rezava em 1969 o título de um dos livros do hoje esquecido Jean Lartéguy. O episódio das quatro horas do prolixo jantar com os correspondentes estrangeiros, nas vésperas dos 50 anos do 25 de abril, foi o tempo e o lugar de um dos maiores combates entre o Marcelo profundo e o Marcelo funcional, neste caso na condição de Presidente da República. Este último, infelizmente, foi completamente esmagado pelo primeiro.
Devo confessar a minha total incapacidade de recusar uma nova possibilidade a quem tenha estragado todas as anteriores. Por isso, rendi-me ao desempenho de Marcelo no primeiro mandato presidencial. No complexo tempo da austeridade de uma Europa alemã, com um governo minoritário e inédito das esquerdas, Marcelo conseguiu juntar a sua avidez de aclamação popular a um talento estratégico, capaz de ver para além do imediato, colocando o interesse nacional acima das inclinações de fação. Contudo, neste segundo mandato passa-se o inverso. O Marcelo profundo – incapaz de resistir ao manipular dos outros como peões de intrigas, cujo proveito parece esgotar-se num prazer solitário e perverso – triunfou em toda a linha. É inútil tentar reduzir os danos do jantar com os jornalistas estrangeiros, através da colocação do foco na questão da responsabilidade histórica em relação aos povos colonizados, para dar alguma seriedade a um episódio onde ela está ausente. Nenhum tema conserva qualquer grau de nobreza, quando resulta de uma torrente discursiva, em tonalidades brejeiras, de um confessionalismo desbocado, povoado de lugares comuns e caricaturas dicotómicas boçais sobre o urbano/ocidental/rápido e o rural/oriental/ lento. Foi um jantar presidencial sem presidente. Imperou, sem rival, um Marcelo em roda livre, desprovido de qualquer contenção, indiferente à gravitas de um cargo que é maior do que ele, pois está ao serviço da confiança que o povo português nele depositou. Aliás, o mesmo povo português, que, “por subscrição nacional”, como escutei muitas vezes a Adriano Moreira, deu a Lisboa o melhor que ela tem.
Em 1870, a ambiguidade de um telegrama levou a França à guerra com a Prússia. Ninguém, sensatamente, pode pedir, ou mesmo desejar, num período tão delicado do país, da Europa e do Mundo, que o presidente se afaste das suas funções devido à sua incontinência verbal. Contudo, numa altura em que o risco de guerra europeia e global permanece ao nível mais elevado desde 1945, quando uma UE à deriva vai sofrer uma metamorfose, de dimensão e alcance incerto, com um Parlamento Europeu de pendor populista e fragmentador, não será demasiado, parece-me, exigir ao Marcelo profundo que deixe o Presidente da República ser um catalisador da unidade
Soromenho-Marques, Viriato, “Na Cidade e nas Serras”, Diário de Notícias, 4 de maio de 2024, página 10.