MUDAR DE VIDA

Para os distraídos, crédulos de que a inteligência humana se tem vindo a apurar sem quebras, aconselho a que se comparem quaisquer dos actuais tratados de economia, com o clássico ensaio que John Stuart Mill dedicou aos Princípios da Economia Política (1848). Ao contrário da hodierna economia dominante, que ignora olimpicamente o seu impacto destrutivo no mundo, Mill fala de uma economia integrada na Natureza e ao serviço do aperfeiçoamento da justiça e dignidade humanas. Mais de um século antes do relatório sobre Os Limites do Crescimento (1972), elaborado pela equipa do MIT chefiada por Donella e Dennis Meadows, Mill salientava a impossibilidade física de um crescimento económico material infinito. Com uma mistura de finura e rigor analítico, o pensador britânico indicava que, inevitavelmente, os sistemas económicos serão forçados a reconhecer a necessidade de um ‘estado estacionário’ (stationary state). Contudo, o autor chama a atenção para a necessidade de distinguir o crescimento material, que tem limites físicos objectivos – os quais podem ser adiados mas não evitados – do desabrochar das capacidades humanas, cujos contornos de aperfeiçoamento são indetermináveis.

Desta forma, Mill antecipa dois temas que são hoje muito glosados, mas insuficientemente colocados em prática: o da necessária harmonização da economia com a Natureza (que hoje designamos como “economia ecológica”), por um lado; e o da procura de novos indicadores, nomeadamente qualitativos, de bem-estar e desenvolvimento, que não sejam redutíveis aos parâmetros do mero crescimento material, com inevitáveis repercussões nos ecossistemas e no frágil equilíbrio ambiental da biosfera. Ouçamos Mill: “Eu espero sinceramente, para o bem da posteridade, que a sociedade se contente com o ser estacionária [com o atingir do estado estacionário], muito antes de a necessidade a compelir a isso. É quase desnecessário observar que uma condição estacionária não implica um estado estacionário do desenvolvimento humano. Existiriam todos os tipos de cultura mental e de progresso moral e social; [e] muito espaço para o aperfeiçoamento da Arte de Viver (Art of Living).”

A aposta numa verdadeira Arte de Viver surge, assim, no contexto de uma profunda e indispensável viragem da civilização, refundando o conceito de prosperidade. Em alternativa a um estado de progresso contínuo e material no crescimento da produção e do capital, Mill propunha a aposta colectiva num estado estacionário da riqueza material, suportando um investimento tendencialmente ilimitado na justiça social distributiva, na educação, nas artes, no respeito e usufruto da beleza e grandeza das criações espontâneas da Natureza. A mudança de estilo de vida que essa viragem acarretaria, não surge, a esta luz, como a apologia de uma pobreza inevitável, mas como uma escolha livre de um patamar superior de progresso. Em 1848, isto poderia parecer um sonho. Em 2020, mudar de vida é a única esperança para evitar o pesadelo do colapso ambiental e social que continua a crescer a olhos vistos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 15 de Agosto de 2020, página 14.

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Paulo Rodrigues

Desde a tomada da bastilha e a ascensão ao poder da burguesia, em 1789, que o sistema capitalista governa o mundo.
Milhões de mortos depois (basta pensar nas 2 guerras mundiais, na guerra da Coreia, do Vietname, do Iraque, da Síria, da Palestina, etc., etc., etc…) o sistema continua a fazer sentido (para a maioria…) mas, como Marx explicava, essa lógica assenta em permissas erradas, pois ele é um sistema predatório, seja das matérias extraídas ao planeta, seja da mão de obra, considerada como mercadoria.
O facto é que mesmo os progressistas continuam a defender o crescimento contínuo da economia.
As crises brutais do sec. XXI, que acumulam crises às crises anteriores, ameaçam a última versão do capitalismo, chamado de neoliberalismo.
Cientes disso (a narrativa do neoliberalismo omite a história, mas os teólogos conhecem-a bem), os neoliberais estão a pagar para substituir os regimes democráticos por regimes autoritários.
Os “aprendizes de feiticeiro “do autoritarismo já andam por aí, também em Portugal.
Embora por enquanto sejam pouco mais que anedotas, há o perigo de isto ganhar dimensão.