Sábado passado, metade da tripulação do navio de patrulha costeira, “NRP Mondego”, fundeado no Funchal, recusou-se a executar a missão de acompanhamento do navio russo Akademik Tryoshnikov, dedicado à pesquisa no âmbito da designada “ciência polar”. No atual figurino nacional de Forças Armadas (FFAA) totalmente profissionalizadas, certamente, nenhum dos 4 sargentos e 9 praças envolvidos desconhecem o preço de uma ação que possa ser considerada como indisciplina, eventualmente, na sua forma extrema de motim. Estamos a falar de pessoas que abraçaram a carreira militar, e que organizaram as suas vidas, incluindo as responsabilidades familiares, em função de uma profissão que é também uma vocação. Uma aparente demonstração dessa consciência está patente no modo como esses militares apresentaram a sua recusa perante o comandante do navio: respeitosamente formados no cais (ver artigo de Valentina Marcelino, DN, 15 03 2023). O que terá levado estes militares a um ato, cuja avaliação do exterior oscilará entre a coragem e a temeridade? Os argumentos apresentados são de peso: o navio não tem a manutenção que os manuais de segurança exigem, um dos dois motores não funciona, assim como um dos geradores, há registo de entradas de água, fugas de óleo e risco de incêndio. Em suma, de acordo com os 13 militares que disputaram a ordem recebida, a navegação exigida continha a possibilidade de riscos para a segurança do navio e dos seus tripulantes. De acordo, aliás, com o que é conhecido, o próprio Comando Naval tinha delegado no comandante do navio a decisão de assumir, ou não, a missão. A impressão com que fico é a de que estamos a discutir um assunto sério, a disciplina militar, mas secundário no contexto em que agora nos encontramos. Seja qual for o desfecho deste caso, pela primeira vez muitos portugueses ficaram a saber, através do gesto destes marinheiros, aquilo que inúmeros protestos escritos de generais e almirantes não conseguiram transmitir, nem aos seus altos destinatários políticos nem à opinião pública em geral: o país cujo PM, sem pestanejar, afirma querer “derrotar a Rússia”, é o mesmo que nem é capaz de cuidar da segurança dos seus navios patrulha (e respetivos tripulantes), destinados a missões de fiscalização marítima e de busca e salvamento… O que deveria estar no tribunal da opinião pública não é a aparente desobediência dos marinheiros, mas o facto de que desde há décadas sucessivos governos, com uma explosiva mistura de incompetência e desleixo, estão apostados em desvitalizar as FFAA, desde logo com a insensata abolição do SMO, e depois com a sangria sucessiva de pessoal, de meios e, não é menor, de prestígio.
A disciplina militar é essencial, mas não é absoluta nem incondicional. Milhões de vidas foram poupadas pelo Armistício de 11 de novembro de 1918, que não teria ocorrido sem a corajosa desobediência dos marinheiros alemães de Wilhelmshaven e de Kiel, iniciada em 29 de outubro, recusando-se a partir para uma batalha final suicida contra a muito superior Armada britânica. O seu motim fez cair um governo brutal que não tinha mais nada a oferecer à Alemanha e ao mundo do que a continuação da mortandade. No caso do “NRP Mondego”, a alegada indisciplina dos marinheiros talvez tenha revelado a muitos distraídos que um Estado desprovido de sistema imunitário – de FFAA e de um desígnio nacional autónomo – é apenas um sítio com gente dentro. Com um passado destinado ao esquecimento e um futuro ameaçado.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 18 de Março 2023