MARIA DE LOURDES PINTASILGO – Mulher de um Tempo Novo

EXPOSIÇÃO NO MUSEU DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Até ao próximo dia 31 de agosto estará patente ao público no Museu da Presidência da República uma exposição dedicada à vida e obra da primeira mulher que desempenhou o cargo de primeiro-ministro em Portugal, com o título de Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo. A Exposição, com muito material alusivo tanto à biografia pessoal e privada, como ao percurso desta notável cidadã na esfera pública, é servida por um rico catálogo com 285 páginas – apresentado pela diretora do Museu, Maria Antónia Pinto de Matos -, profusamente ilustrado, contendo breves ensaios e testemunhos de três dezenas de personalidades que com ela privaram, incluindo os textos do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de António Ramalho Eanes e António Guterres. O ensaio do nosso colaborador Viriato Soromenho-Marques, que agora se publica, integra também esse catálogo.

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Chegar ao entardecer de uma existência, vivida em intensidade plena, olhando-nos no espelho dos nossos atos, sabendo que nos tornámos naquilo que desde o início prometíamos ser, será um atributo partilhado por escassas pessoas. Juntar a isso, a gratidão por tudo o que foi realizado, sem amargura pelo que ficou por fazer, sabendo que até na amargura pode espreitar a sempre indesejável arrogância de uma desmesurada ideia de si, é uma lúcida humildade que roça o privilégio.

1. Os três verbos de uma Vida. Encontramos essas duas invulgares características, em versão concisa, numa entrevista/conversa de Maria de Lourdes Pintasilgo com Maria João Seixas, datada de 2001 (1). Respondendo à pergunta final sobre qual a sua «palavra de eleição», Maria de Lourdes Pintasilgo responde em versão dupla: «responsabilidade e entusiasmo». Esse binómio articula-se inteiramente com o autorretrato que de si faz Maria de Lourdes Pintasilgo no início dessa conversa. Os três verbos que melhor a definem poderiam ser estes: saber, devere pertencer. Definindo o saber, diz Maria de Lourdes Pintasilgo: «Acho que sou, antes de tudo o mais, uma pessoa fascinada pelo saber e por passear entre os saberes (…) de um passeio entre saberes, de uma ligação entre formas diversas de conhecer e de sentir». Explicando o dever: «Sou também visceralmente movida pelo dever (…) que é como que uma chamada do futuro para agora (…) chamamento do que ainda não está». Esclarecendo o pertencer: «O terceiro traço, pode parecer estranho referi-lo no momento que vivemos, é um gosto muito fundo, uma sensação de pertença sem limites ao mundo».

Nesse límpido e rigoroso autorretrato condensa-se a melhor chave de leitura da personalidade e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo. A paixão pelo saber fê-la ultrapassar, quase espontaneamente, o grande abismo das «duas culturas», usando a expressão cunhada por C. P. Snow (1959). Esse abismo, às vezes radicalizado na hostilidade causada pela estranheza mútua, entre as Humanidades e as Ciências da Natureza e da Tecnologia, foi-lhe completamente alheio. A brilhante estudante de engenharia e respeitada profissional no terreno fabril sentia que no mundo em aceleração onde nascera não seria avisado prescindir de nenhum modo de conhecimento. O dom de uma profunda fé cristã ajudará a explicar o seu interesse pela teologia e pela filosofia, mas é sobretudo a sua consciência de que a «negligência» («negar o que liga», 1998: 420) constitui a mais perigosa e voluntária das configurações da ignorância, o que mais validamente explica a sua entrega a um saber, onde se incluem todas as formas de expressão cultural e artística (2). O dever, onde se manifesta diretamente a vocação profética de Maria de Lourdes Pintasilgo, surge como um imperativo de libertar o futuro adormecido no presente, ecoando a poderosa formulação de Leibniz: «o presente está grávido do futuro». Para Maria de Lourdes Pintasilgo, o dever ergue-se num imperativo (em sentido incondicional que não desagradaria a Kant) para uma ação dual. Primeiro, na manifestação do perigo, negligenciado ou escondido. Segundo, no alimentar de uma esperança que precisa de ser organizada para se cumprir no mundo real. Finalmente, «a pertença sem limites ao mundo» parece confundir-se com toda a sua biografia. Resulta da combinação entre a espontaneidade do seu carácter, naturalmente próximo de todos em todos os lugares, com as oportunidades, jamais desperdiçadas, para se colocar ao serviço das causas onde poderia fazer a diferença. Essa pertença iniciou-se na sua integração nas redes internacionais de estudantes católicos (Pax Romana-MIEC), ou na fundação do Movimento Graal em Portugal (1957), estendendo-se aos permanentemente recebidos e satisfeitos pedidos de contribuição por parte de organizações e agências multilaterais, dentro ou fora do quadro das Nações Unidas.

2. Estar à altura do melhor futuro. Maria de Lourdes Pintasilgo situa-se nos antípodas de uma interpretação funcional e rotineira da política, como se o mundo estivesse garantido. De todos os mais salientes protagonistas da vida pública nacional depois do 25 de Abril, Maria de Lourdes Pintasilgo foi quem mais aguda e coerentemente percebeu que a política ou seria a longa e tenaz aventura coletiva da salvação de um mundo em naufrágio, ou poderia tornar-se numa das mais vãs atividades humanas. Importa começar pelo saber. As visões hegemónicas nos discursos políticos, em todo o espectro conhecido, comungam do mesmo erro, pois não percebem que as crenças fundadoras da modernidade estão falidas: o mito do progresso ilimitado acabou (1998: 409). A interpretação linear da história é uma ilusão, que pagaremos duramente se não tivermos a coragem humilde de aceitar os desafios da complexidade e da incerteza (1990: 36). Contudo, as grandes esperanças suscitadas pelo fim da Guerra Fria, cedo murcharam quando se percebeu que «o muro de Berlim só caiu de um lado» (1998: 411). A política perdeu uma visão «englobante», despiu-se de «projeto», ficando «desprovida de força mobilizadora para os indivíduos e os grupos». O vazio de uma política à deriva é ocupado pelo novo impulso global da asfixiante hegemonia do neoliberalismo, dessa «economia de mercado», transformada na «nova ideologia que preenche todo o campo da ação pública» (1990: 37).

A transformação da economia de mercado num «desastre internacional organizado» e numa «injustiça maciça» constitui uma ameaça de proporções inéditas e ontológicas (1991: 65). O seu grande revelador é a crise global do ambiente, que Maria de Lourdes Pintasilgo, significativamente, também designa como «revolta da natureza». «A globalização manifesta-se, num primeiro olhar, na revolta da natureza (…) A natureza era um contexto da história, algo que estava “lá fora”, fora de nós e dos sonhos prometeicos que guiavam a humanidade.» (1997; 317; 1997: 64). A imensa máquina de predação da Terra, dos seus recursos vivos, onde se inclui a própria humanidade (tudo amalgamado na condição de «stocks»), exige que não só a política, mas também a sociedade, os valores e as almas se entreguem nessa empresa que só terminaria nos desertos que a sua distópica desmesura de crescimento ilimitado fatalmente implicaria. A própria fusão da ciência com a técnica (tecnociência) acaba por se transformar num instrumento, potencialmente cego dessa desmesura, se a prioridade dos valores-guia favoráveis ao respeito da vida não se impuser (1998: 410).

A síntese da proposta alternativa de Maria de Lourdes Pintasilgo – onde se reflete o diálogo com grandes pensadores como Levinas, Arendt, Jonas ou Morin – passa pelas quatro dimensões de uma nova ética, capaz de mobilizar os cidadãos numa renovação ecuménica e cosmopolita da sociedade e suas instituições: o imperativo da responsabilidade, o dever de sermos ativos sujeitos da história comum; a dimensão docuidado, onde o resgate da experiência histórica das mulheres tem um papel matricial (Maria de Lourdes Pintasilgo fala de «uma prática que é também uma teoria»: 2000: 409); o horizonte do futuro, abrindo para a irrecusável justiça intergeracional; o campo global de uma ética prática que inclui a viragem das soberanias nacionais para a «descoberta de mecanismos, de ideias, de instituições que permitam gerir os problemas globais» (1998, 415).

3. Uma serena e ilimitada dádiva de si. Maria de Lourdes Pintasilgo tinha uma profunda consciência do mistério, profundo e insondável, que permite o encontro entre o destino pessoal e o destino coletivo, entre o que guia a vida do ser humano concreto de carne e osso, e o rumo histórico dos povos e da humanidade. Ela considerava como um «tempo de felicidade», os cinco anos de viragem e consolidação democrática na vida política nacional. Nesses anos, foi a primeira mulher ministra, e a primeira mulher a assumir a chefia de um Governo na longa história portuguesa, pioneirismo que ainda não teve continuidade. Com alegria, abraçou também a sua candidatura à Presidência da República nas eleições de 1986. Parecia que a história nacional e a sua vida se voltavam a encontrar numa excecional oportunidade para uma transformação positiva da nossa cultura democrática, com previsíveis impactos favoráveis no alargamento dos valores da justiça e da igualdade, tanto na participação cívica como nas políticas económicas. Não terá sido fácil receber, nessa noite de 26 de janeiro de 1986, o magro resultado de 7,4% dos votos. Contudo, para Maria de Lourdes Pintasilgo um momento de tristeza jamais poderia prolongar-se em amargura.

Para quem encara a vida política, como Maria de Lourdes Pintasilgo sempre o fez, como um serviço público, como uma entrega ao bem de todos, sem agendas ocultas nem interesses inconfessados, até as derrotas são campo fértil para aprender melhor o mundo e amadurecer como pessoa. Nos últimos 15 anos da sua vida, Maria de Lourdes Pintasilgo continuou ao serviço desse apelo do futuro onde enraizava a sua ética fundamental. O mundo não a esqueceu, como o provam os vários convites que a honraram. O país, nem tanto. O dom de si na entrega ao serviço do bem comum, por vezes até à exaustão, era a face visível do realismo profético de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ao serviço de um ideal maior do que ela própria – só utópico para quem julgue que o presente irá escapar à imutável lei da mudança perpétua – Maria de Lourdes Pintasilgo sentia a responsabilidade do seu realismo profético. A responsabilidade por uma verdade que o futuro tende sempre a realizar. Seja como perigo existencial para a humanidade inteira, que a visão profética contribuiu para evitar. Seja como tardio lamento coletivo pela tragédia e sofrimento, que o deliberado desprezo do alerta profético tornou inevitáveis.

Referências bibliográficas

  1. Seixas, Maria João, «Conversa com vista para… Maria de Lourdes Pintasilgo», Público, 5 de novembro de 2001, consultado em https://www.publico.pt/2001/11/05/jornal/conversa-com-vista-para-maria-de-lourdes-pintasilgo-163849
  2. Todas as referências indicadas no corpo do texto remetem para a antologia fundamental do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. A data indica o ano provável da redação do texto e as páginas reenviam para a localização exata da citação na referida antologia: Coutinho, Antónia; F. Grácio; N. Jorge; P. B. Santos; R. Tavares da Silva (organização), Para Um Novo Paradigma: Um Mundo Assente no Cuidado. Antologia de Textos de Maria de Lourdes Pintasilgo, Prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa e posfácio de Maria João Seixas, Lisboa: Afrontamento, 2012.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras em 15 de junho de 2022, pp. 23 e 24.

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