“MALHAS QUE O IMPÉRIO TECE…”

O MFA, com a ação militar do 25 de abril, permitiu a construção do período mais pacífico e democrático de sempre da nossa bissecular história constitucional. Contudo, alimentar o mito de que se tratou de uma revolução que não foi paga com sangue e violência só diminui aquilo que abril trouxe para a nossa vida coletiva. Vem esta reflexão a propósito de uma petição promovida por antigos militares africanos que lutaram na Guiné nas Forças Armadas Portugueses (FAP). A pretensão desses militares, de lhes ser devolvida a nacionalidade portuguesa, foi noticiada pelo DN de 26 de setembro, com um texto de Paula Sá e um artigo de opinião de um dos signatários da petição, Amadu Jao. O assunto é amplo, mas à partida gostaria de declarar que seria inaceitável essa pretensão não ser atendida.

Politicamente, o Estado Novo tem a responsabilidade histórica de ter desperdiçado o esforço de guerra dos 1 367 896 homens (443 649 dos quais de recrutamento local), que segundo o Estado Maior do Exército passaram pelas fileiras das FAP nas guerras do Ultramar entre 1961 e 1974. Treze anos de sacrifícios e mobilização nacional – que fizeram Portugal ficar perto do Vietname do Norte no topo mundial da despesa militar – foram sacrificados à fantasia de uma guerra infinita, sem estar ao serviço de uma política que permitisse uma autonomia progressiva, sem exclusão de ninguém, dos territórios ultramarinos. Essa teimosia conduziu ao preço maior da revolução de abril, pago por milhões de cidadãos, vivendo sob a nossa administração, e que foram subitamente lançados para as tempestades da história. Contudo, a jovem democracia não se encontra isenta de responsabilidades, em particular no caso dos antigos combatentes portugueses naturais da Guiné. No Acordo de Argel, de 26 de agosto de 1974, Portugal obteve do PAIGC a promessa de que os seus militares naturais da Guiné seriam respeitados, sendo até mencionado no artigo 26.º do Anexo a esse Acordo, que: “O Governo Português participará num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da República da Guiné-Bissau que prestem serviço militar nas forças armadas portuguesas e, em especial, dos graduados das companhias e comandos africanos.” Portugal, comprometeu-se em troca, a “desarmar as tropas africanas” (artigo 17.º), pagando igualmente todos os vencimentos devidos até ao final de 1974 (24.º), e “…ainda as pensões de sangue, de invalidez e de reforma” devidas aos antigos combatentes com direito a tal. Com uma vingativa brutalidade, o PAIGC, logo no Outono de 1974, começou a fuzilar os primeiros comandantes guineenses das FAP. Eduardo Dâmaso e Adelino Gomes referem numa investigação sobre o tema, que as certidões de óbito manifestavam uma rude sinceridade: “faleceu por fuzilamento”. O tenente Abdulai Queta Jamanca foi o primeiro a ser assassinado. Quantos mais terão tombado? 700 parece ser o número mínimo. A cifra real poderá ser muito superior. A investigadora da Universidade de Coimbra, Fátima da Cruz Rodrigues, especialista neste tema, também destaca a situação de crueldade excecional a que foram submetidos esses combatentes, em comparação com os de Angola e de Moçambique. A história não é um tribunal, nem serve para edificação das almas. O que esses guerreiros abandonados na derrocada do império pedem não é uma justiça impossível de satisfazer, mas o direito de acabarem os seus dias como cidadãos do país ao qual deram o seu sangue e confiaram as suas vidas.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 8 de outubro de 2022, p. 11.

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