MALES E REMÉDIOS

No passado, as tragédias aconteciam por falta de informação. Édipo não sabia que Jocasta era sua mãe, por isso casou com ela. Em 8 de Janeiro de 1815, milhares de soldados ingleses e norte-americanos bateram-se em Nova Orleãs, porque o navio que trazia a notícia da assinatura da Paz de Gand (24 12 1814) ainda não tinha chegado às costas dos EUA. Hoje, bem pelo contrário, o nosso problema é o excesso de informação. Desde a altamente qualificada, como é o caso das obras clássicas, que antes apenas podíamos consultar em bibliotecas de topo, e agora podemos descarregar displicentemente nos nossos computadores portáteis, mas sobretudo a falsa informação, construída por uma indústria da “mentira organizada”. Ela usa os talentos da informática para envenenar as mentes com o vírus binário do tribalismo e do fanatismo, tal como na I GM se recorria aos melhores professores de química para a tarefa “patriótica” de fabricar os gases tóxicos que sufocariam até à morte os exércitos de adolescentes, que a loucura dos impérios imolou na guerra das trincheiras.

No passado, o problema residia na ignorância pura e dura. A começar nas infelizes multidões analfabetas, que viviam e morriam nos campos agrícolas ou nas insalubres cidades europeias. No século das Luzes a esperança chamava-se educação. Em 1792, o Marquês de Condorcet, o primeiro republicano da Revolução Francesa, elaborou o primeiro projecto de ensino público universal, sem discriminação de género. Não demorou muito tempo a perceber-se que, mesmo com o aumento extraordinário dos níveis de instrução, não se resolviam os limites estruturais da condição humana. Muitos das dificuldades que, antes, se julgava poderem ser atribuídas à iliteracia, afinal, tinham a sua funda raiz nesse “lenho retorcido” (como diria Lutero) que é o nosso “software” mais profundo. Hoje o nosso problema é a existência de uma multidão arrogante, com instrução formal, e que se lança ao mistério da vida com o atrevimento dos idiotas funcionais. Esses “senhorzitos satisfeitos” (assim baptizados pelo arguto Ortega y Gasset), estão por todo o lado, ocupando demasiadas vezes posições de comando. Falta-lhes a visão do todo. Pior, nem sequer lhe sentem a falta. Decidem a partir da pequena janela em que se julgam especialistas, e têm uma absoluta falta de senso-comum. A sua assinatura encontra-se escondida debaixo dos escombros das muitas tragédias que semeiam, como foi o caso da crise global do sistema financeiro de que ainda lambemos as feridas.

Para estes dois males, informação tóxica e idiotia funcional dos “especialistas” assumidos, não existe nenhuma “app”, que se possa adquirir na internet. Por outro lado, não me parece sensato confiar apenas às políticas públicas – também elas tantas vezes vítimas de dados intoxicados e analistas obtusos – os cuidados que, de acordo com o atlético princípio da subsidiariedade, são tomados com mais eficácia e afinco no plano pessoal, isto é, por cada um de nós. Para ambos os males modernos, importa equiparmo-nos com espírito crítico e desconfiança metódica. Nunca aceitar uma informação, sem a submeter a todos os testes de verificação, para aquilatar da sua credibilidade (na fonte, no conteúdo, na correspondência aos fenómenos reais). A desconfiança metódica é a mais potente terapia para não cairmos na armadilha do pensamento mágico. Só essa desconfiança nos permitirá guardar força vital para os desafios que se aproximam.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 9 de Outubro de 2021

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