Não é só em Portugal que a vida política se parece transformar cada vez mais num reality show, pela mediocridade dos argumentos e protagonistas. O contraste abissal entre a gravidade das questões que ameaçam o nosso presente-futuro (na paz e na guerra, no ambiente, clima, segurança alimentar, emergência de tecnologias fora de controlo…) e a vacuidade do registo de divertissment em que decorre grande parte da trama política, é confirmada pela assimetria profunda entre o poder aparente do palco político, e o poder real – opaco, blindado e planetário – do complexo económico-financeiro, que destapa o seu véu em raros momentos, como é o caso dos Encontros de Davos.
Contudo, entre a simulação do poder aparente e a ocultação do poder de facto, existe uma esfera essencial do “mundo da vida” (uma bela expressão de E. Husserl). Refiro-me a esse riquíssimo filão de talento e criação onde se jogam as interpretações do mundo, as suas recriações pelas artes, a compreensão da sua complexidade pelas ciências, a sua problematização pelo confronto ético entre o que podemos e devemos fazer na nossa relação com esta Terra que é a nossa única casa. Nos últimos dias de janeiro morreram dois homens – um em Lisboa e o outro em Camberra – que representaram o que de melhor existe nessa esfera discreta, mas transparente para aqueles que se esforcem por franquear as suas portas abertas, onde germinam novas ideias e rumos coletivos. Refiro-me, em Portugal, a Luís Moita (1939-2023). Ficará para a história pela sua participação na vigília na Capela do Rato, há 50 anos, e pela sua imagem, fatigada, mas sorridente, entre os derradeiros presos políticos libertados após o 25 de Abril. Muito para além disso, para quem como eu o conheceu e com ele colaborou nos seus longos anos à frente do CIDAC (1974-1989), uma ONG que foi um espaço de iniciativa e debate livre na busca da paz e do desenvolvimento justos. Notável também como professor e investigador universitário, na área das Relações Internacionais, em especial na Universidade Autónoma de Lisboa. Mais uma vez, a demanda pela paz, levou-o sempre, nos seus cursos, projetos e escritos, a ultrapassar as crispadas dicotomias nos estudos de relações internacionais entre realistas e liberais, seguindo uma via crítica e interrogativa, colocando sempre a análise cuidadosa das complicações do mundo concreto à frente das teorias prontas usar. Na Austrália, faleceu Will Steffen (1947-2023). A sua formação em química foi o ponto de partida para um percurso que o transformou num dos mais importantes e influentes cientistas mundiais nos estudos ambientais e climáticos. Foi sob a sua direção que o ambicioso Programa Internacional Geosfera-Biosfera publicou estudos fundamentais que consolidaram a formação das Ciências do Sistema-Terra, que se transformaram na consciência esclarecida e crítica dos perigos crescentes de colapso das condições ambientais e climáticas que suportam a continuidade histórica da humanidade. Will Steffen visitou várias vezes Portugal, tornando-se membro ativo do projeto (e ONG) da Casa Comum da Humanidade, liderado pelo jurista Paulo Magalhães. Ele sabia que sem criarmos um direito internacional para a proteção do Sistema-Terra, o rigor da ciência não passará das boas intenções. A mortalidade faz parte irrecusável da condição humana, mas aqueles que se transcendem no respeito pela verdade e na luta pelo bem comum, esses continuam vivos na luz que o seu exemplo irradia.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 4 de fevereiro 2023, p. 9.