Entre 1983 e 1985 estudei obsessivamente a possibilidade de uma guerra nuclear na Europa. A crise dos euromísseis – opondo os SS 20 soviéticos aos mísseis de cruzeiro e aos Pershing 2 norte-americanos – reflectia a escalada agressiva dos dois lados da Guerra Fria, podendo resvalar para uma guerra nuclear limitada a um teatro centro-europeu. No Verão de 1983, o tema mais popular nas discotecas alemãs – da autoria de um grupo de rock de Bochum, Geier Sturzflug – intitulava-se “Visite a Europa enquanto ela ainda está de pé”… A recusa da guerra levava milhões de alemães, e outros europeus, à rua, e mesmo em partidos de governo existiam vozes, como a do Presidente do estado federado do Sarre, Oskar Lafontaine (do SPD), que colocavam em causa a pertença de Bona à NATO. Em 1985, poucos antes da subida de Gorbachev ao poder, publiquei um livro sobre o que aprendera nessa viagem sobre o universo da guerra no tempo das armas atómicas. A mais importante lição foi a de perceber que a guerra nuclear é uma forma extrema de desmesura. Ela é o modo final e distópico da razão instrumental. Os estrategistas, durante os 40 anos da Guerra Fria, tentaram, em vão, racionalizar aquilo que está no plano da desrazão. A conclusão a que se chegou, a leste e a oeste, foi a de que para evitar a guerranuclear seria necessário manter canais de diálogo e cooperação com o potencial inimigo, para evitar aquela que seria a última das guerras, pois traria, com a destruição mútua assegurada, o fim da própria civilização. Os sobreviventes amaldiçoariam a sua própria sobrevivência.
A gestão do monstro nuclear, criado pela combinação da ambição e da tecnologia humanas, obrigou ao desenvolvimento de novas categorias de pensamento, criando também uma disciplina de atenção à visão do mundo e aos interesses do potencial inimigo. A sovietologia tornou-se numa disciplina fundamental, nas academias e nas chancelarias. Th. Schelling, H. Kahn, R. McNmara, nas suas obras clássicas, ensinaram-nos que é preciso perceber a perspectiva do Outro, mesmo no inferno de uma escalada nuclear. No meio da incerteza dos jogos de guerra, havia uma certeza fundamental: não se sabia como é que o conflito iria começar, mas sabia-se como iria terminar: num oceano de morte e destruição. A imagem pungente das devastadoras consequências da guerra nuclear foi traçada com rigor por Jonathan Schell, com o seu livro O Destino da Terra (1982), ou o relatório de 5 cientistas (conhecido por um acrónimo feito a partir do nome dos seus autores: TTAPS), liderado por Carl Sagan, O Inverno Nuclear (1983).
Estas lições da Guerra-Fria não parecem estar a ser atendidas na resposta do Ocidente à invasão russa da Ucrânia. As precipitadas sanções, mal desenhadas, atingem toda a comunidade internacional e aumentam o risco de escalada. O Ocidente ainda está em negação quanto ao calibre da ameaça. A Rússia não é o Iraque nem a Líbia. Só poderia ser vencida numa guerra total, onde também os “vencedores” ficariam sepultados sob ruínas. A heróica resistência ucraniana só fará sentido, não visando uma quimérica vitória, mas viabilizando um honroso cessar-fogo, que, como escreveu Jeffrey D. Sachs, é realista e possível. Os insultos, do líder do Ocidente a Putin, numa altura em que só as palavras podem salvar a paz, carece de qualificação. Se queremos evitar uma guerra, potencialmente nuclear, é preciso negociar agora. Não teremos uma segunda oportunidade.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias em 2 de Abril de 2022