LEWIS L. STRAUSS (1896-1974): UM DR. FAUSTO DA DESMESURA TECNOLÓGICA

Um dos períodos mais sinistramente eufóricos da história contemporânea ocorreu na década e meia após o final da II Guerra Mundial. Nos EUA, o único país que verdadeiramente saiu vencedor do conflito – como escreveu o nosso saudoso Eduardo Lourenço -, o isolacionismo foi definitivamente derrotado, passando o país a ocupar sem complexos o trono da hegemonia mundial, tendo como rival útil para a coesão dos seus aliados, a URSS. De 1945 em diante, como demonstrou o historiador da Universidade de Georgetown, John McNeill, a humanidade, liderada pela superpotência norte-americana, entrou numa vertiginosa senda de crescimento económico conseguido à custa de um cada vez mais pesado custo ambiental. Esse período, que ainda não foi interrompido, foi designado por McNeill como a “Grande Aceleração”. O nosso presente e o nosso futuro serão marcados pela fase caótica e disruptiva desse processo, ou, se quisermos, pela entrada num novo período que poderemos designar como de Grande Desaceleração, onde se incluem, entre outros, fenómenos tão diversos como o colapso da criosfera nos polos, a redução abrupta da diversidade biológica, a desglobalização económica, o regresso de grandes fomes periódicas pelas más colheitas causadas pelas alterações climáticas, arrastando consigo violentos e maciços movimentos migratórios, a erosão das democracias representativas e a fortíssima probabilidade do uso de armas nucleares em cenários de guerra. 

O que mais nos pode surpreender hoje é a cegueira voluntária que campeou (e campeia) por entre grandes figuras que, à frente de importantes instituições, não hesitaram (nem hesitam) em carregar no pé do acelerador, profundamente convencidas de que o futuro seria risonho, pacífico e sem mácula. E o mais curioso ressalta do facto de muitas dessas personalidades dotadas de um otimismo alucinado serem ou cientistas, ou líderes de instituições dedicadas à tecnociência. Tal é o caso de um ex-banqueiro, Lewis L. Strauss, nomeado pelo Presidente Eisenhower para dirigir a US Atomic Energy Commission (AEC), entre 1953 e 1958. Depois de se ter distinguido como um impulsionador da bomba de hidrogénio e da manutenção da supremacia do arsenal nuclear dos EUA face ao da URSS, Strauss tornou-se num dos profetas do nuclear civil, no quadro de uma visão panglossiana que só poderemos designar como indicadora de um febril milenarismo tecnocientífico. Em 16 de setembro de 1954, num jantar em que participaram numerosos prémios Nobel, Strauss dissertou sobre um futuro a 15 anos de distância, de descobertas científicas ilimitadas, conduzindo a um domínio total, sem custos ou impactos negativos, sobre uma natureza dócil e obediente, um futuro em que a energia seria tão barata que dispensaria um contador em cada casa (“too cheap to meter”), um tempo em que as doenças seriam vencidas, a fome abolida e a paz seria o estado geral da humanidade. 

A primeira central nuclear em qualquer parte do mundo foi inaugurada em Obninsk, na URSS, em 27 de junho de 1954, menos de 3 anos antes da primeira norte-americana, que entrou em atividade em 18 de dezembro de 1957, na Pensilvânia. O que é relevante, todavia, é verificar que o casamento da ciência com o Estado (neste caso o governo federal) e os grandes interesses empresariais incutiu em homens como Strauss um cúmplice entusiasmo voluntarista e uma total insensibilidade para com os efeitos colaterais decorrentes de inovações tecnológicas, cujos impactos negativos sobre a saúde e o ambiente foram grosseiramente ignorados ou desprezados. Em 1954, o mundo estava praticamente virgem, como tenho escrito nesta coluna do JL. Mudámos para um planeta muito pior nos últimos 70 anos. Em 2023, os discípulos de Strauss estão vivos e ativos, no mesmo complexo militar-industrial de que ele foi um dos fundadores. Só que hoje, impor aos povos uma corrida às armas, com total indiferença pela miséria humana e ambiental crescente, para satisfazer o apetite insaciável da indústria de armamentos, já não é sinal de um otimismo patológico, mas sim um indicador do extremo grau de corrupção e baixeza ética a que chegaram os donos do mundo e os seus serventuários políticos. Talvez sirva de consolo, mesmo que escasso, saber que o Presidente Eisenhower, o mesmo que nomeara Lewis Strauss para o seu lugar, cunhou no seu discurso de despedida da presidência dos EUA, em 17 de janeiro de 1961, o conceito de “complexo militar-industrial” (Military-Industrial Complex), considerando-o um terrível perigo para o futuro da democracia, como é abundantemente confirmado pela realidade atual, alertando também para um tipo de economia que ao fazer da “pilhagem” (plundering) da natureza o seu foco principal, colocaria em causa a sobrevivência cultural e física das gerações seguintes.

Viriato Soromenho-Marques 

Publicado no Diário de Notícias, edição de 5 de abril de 2023, pp. 30 e 31.

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