JUSTIÇA ENTRE GERAÇÕES NUM MUNDO AO CONTRÁRIO

A ocupação de escolas regressou a Portugal. Tratar com paternalismo os protestos juvenis, no país e no mundo, contra a marcha imparável que ameaça transformar a crise ambiental e climática num colapso sem remissão, é fugir ao que de essencial do que essas lutas estudantis representam. A escalada da atual guerra europeia, apenas junta mais uma prova para a tese de que o nosso mundo está ao contrário. Os adultos em posição de poder, cegos de egoísmo e analfabetismo ético, juntam mais achas na fogueira do caos e da desordem. São os jovens, que assumem a responsabilidade pela defesa da nossa frágil e maltratada Casa Comum planetária, retomando o fio da pioneira teoria da justiça entre gerações, inaugurada num diálogo esquecido entre Thomas Jefferson (1843-1826) e James Madison (1751-1836).

A tese de que uma geração tem, através dos seus atos e decisões, responsabilidades morais, jurídicas e políticas para com as gerações seguintes, apresenta um registo de nascimento menos recente do que geralmente se supõe. Ela surgiu através de uma missiva datada de 6 de setembro de 1789, enviada por Thomas Jefferson a James Madison, no final da sua missão em Paris como embaixador dos, então, recentíssimos EUA. Nessa correspondência, entre aqueles que seriam, respetivamente, o terceiro e o quarto presidentes dos EUA, Jefferson tinha consciência de que estava a entrar em mares desconhecidos quando escreveu: “A questão de saber se uma geração de homens tem ou não um direito de obrigar uma outra, parece nunca ter sido desenvolvida quer neste, quer no nosso lado da água [Atlântico]. Trata-se, contudo, de uma questão com tais consequências para merecer não só decisão como também lugar entre os princípios fundamentais de qualquer governo”.

Jefferson considerava que tanto para a validade das Constituições como para a duração das dívidas públicas seria necessário respeitar uma fronteira temporal máxima de 19 anos, a idade média de uma geração no final do século XVIII, de acordo com os cálculos do famoso sábio e naturalista francês, conde de Buffon (1707-1788). Uma constituição que não tivesse uma norma de revisão obrigatória, ou uma dívida pública que não fosse vinculativamente resolvida nesse lapso de tempo tornar-se-iam opressivas e ilegítimas, para a geração seguinte, pois esta não tinha participado na sua elaboração, e teria de suportar mais o peso dos juros do que os eventuais benefícios.

Na sua resposta, datada de 4 de fevereiro de 1790, James Madison alarga a proposta de Jefferson com um contributo próprio. Na vertente da dívida pública, Madison recorda que as relações entre gerações não são necessariamente sempre pautadas por características negativas. As gerações herdam umas das outras também as melhorias e os progressos. Por outro lado, se o que está em causa é a luta pela liberdade, contra os males da “conquista” — numa alusão clara à própria guerra pela independência dos EUA — então as dívidas contraídas pela força da necessidade poderão ter de ser tão elevadas que o horizonte de 19 anos será insuficiente para as pagar completamente.

Jefferson, secundado por Madison, pretendia claramente libertar a geração vivente do lastro de uma herança indesejada, que limitasse o campo de liberdade dos vindouros. Contudo, não se julgue que a posição de Jefferson concedia, à geração atual, direitos ilimitados sobre a terra. Recordemos o seu novel princípio: “A terra pertence em usufruto aos vivos” (The earth belongs in usufruct to the living). Para um jurista como Jefferson nenhuma destas palavras era supérflua, ou apenas destinada a conferir uma ênfase retórica. A liberdade de ação da geração vivente incidia apenas sobre o direito de usufruto, e não incluía — como hoje é regra geral — a autorização para destruir as condições biofísicas da própria possibilidade de sobrevivência condigna das gerações futuras.

A posição de Jefferson não só é compatível com uma filosofia política e uma ética, centradas no conceito de responsabilidade, formuladas tendo em vista a presente época da crise global do ambiente e do clima, como é sua legítima percursora. Quando Jefferson exigia que cada geração pagasse as suas dívidas, ele estava a propor um princípio elementar perfeitamente integrável numa hodierna teoria da justiça. As dívidas que limitam a liberdade de escolha das gerações futuras não são apenas financeiras. A atual destruição dos ecossistemas pela desmesura de uma civilização incapaz de romper com um modelo económico extrativista fundado em energias fósseis, está a deixar o fardo de uma «dívida» muito mais cruel sobre as gerações futuras, do que as de teor simplesmente financeiro. Hoje trata-se de uma dívida existencial que coloca em causa a própria viabilidade do futuro da espécie humana e do planeta como o conhecemos. Isso significa, que a luta dos jovens ativistas ambientais e climáticos – representando a resistência contra a maior injustiça histórica entre gerações – enraíza-se diretamente na herança intelectual de Jefferson e Madison, sendo um exemplo ético e uma fonte de inspiração cívica de alcance universal.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 29 de abril, página 12.

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